terça-feira, janeiro 25, 2005

Meu Amigo Sumiu!



Nããão !
Grito numa mistura de angústia e desolação.
Como num filme de terror, onde subitamente aparece Lugosi com seu manto em sombras, um raio, seguido de um trovão estrondoso, me arrepia todo. Estou todo molhado. Com a vista turva. A água quente do chuveiro elétrico continua caindo como de costume. Pela janela a água é fria. Interrompo imediatamente este fluxo, hábito matutino. Abro com certa violência e ansiedade a porta do american box e começo a me enxugar, descuidado, apressadamente. A chuva lá fora é torrencial. Tento novamente.

Não consigo acreditar.

Como numa revelação kafkaniana constato que ao olhar para baixo a minha visão é interrompida por uma montanha, minha conhecida, de dimensões sempre crescentes, que não me deixa contatar o meu companheiro do andar de baixo. Companheiro este, sempre presente e nem sempre camarada.

Um terrível choque.
Saio horrorizado do banheiro em névoa e me dirijo para o quarto de vestir. Deixo um rastro úmido entre os cômodos. Abro imediatamente uma porta de armário. Com a intervenção de um espelho solidário vejo que ele está lá, como sempre. Meio acanhado e escondido. Tento agora uma visão lateral. Uma grande dobra arredondada prejudica um reconhecimento positivo deste amigo de tantos anos e aventuras. Sinto o seu isolamento. Sinto o meu isolamento. Separados por uma massa de carne, bem estruturada, com solo duro e vegetação rala, rasteira, monótona. Atentando melhor, um pequeno acidente geográfico ao centro, no cume. Uma cratera misteriosa. Profunda até. Agora sou um explorador do meu próprio corpo. Lembro-me de uma bandeira tremulando, não de triunfo. Comparo esta descoberta com o deserto arredondado e liso acima de meus olhos. Este panorama com que me deparo todas as manhãs ao barbear-me. Um pesar misturado a uma vontade incontida de gargalhar, para todos que ainda dormem, me invade. Apenas esboço um sorriso sarcástico. Penso: duas esferas imperfeitas separadas em um mesmo corpo. Uma maltratada pelo tempo e pela sua herança genética. Outra, resultado de descaso e de responsabilidade única de seu portador guloso e descuidado. Numa rápida viagem no tempo, como naquele túnel de Irwin Allen, mas sem as presenças de Doug e Tony, revejo em instantâneos a transformação degradante destas regiões. Uma, já foi um verdadeiro planalto com demarcações bem proporcionadas, orgulho adolescente. A outra, superior, coberta por rica vegetação abundante, que às vezes, pelo desleixo, encobria os meus olhos míopes. Ambas as regiões se harmonizavam com as demais partes compondo, senão uma obra impressionante, um retrato bem falado.

Sento, ainda nu, como um personagem exótico de um folhetim mal escrito. Ou ainda de uma página inteira de Frank Miller.

Recordo então as observações jocosas de amigos à mesa semanal do boteco de sempre. Entre um chopp e outro, menções nada honrosas ao desenvolvimento acelerado de minha terra média, alimentada continuamente e, com muito gosto, pelos mais variados petiscos repetidos à exaustão. E o desvario alucinado de anos e anos fartando-se dos mais inesquecíveis doces. Devidamente estudados e apreciados. Comer e comer. Duas das mais divertidas e prazerosas atividades do homem. Avisos não faltaram destes companheiros de histórias e risadas sobre a minha condição cada vez mais espaçosa. Considerava-me com isso travestido com as características e as falhas amadas de um herói de quadrinhos. Assim como o Garfield e as lasanhas. Ou mesmo Dudu e os hambúrgueres. Cartman e os incontáveis palavrões. Ou seja, uma figura agradável, cômica e generosa. Meu amigo Stan Laurel. Algo bem diferente do gordo arrogante, egocêntrico e chato das noites da Globo.

Como numa gestação afeiçoei-me, acostumei-me, adaptei-me ao corpo mutante. Isto é, resignei-me.
Mas agora, com a transformação neste estado, assim como Samsa, senti repugnância. Nesta posição as coisas se complicavam, e muito, pois olhando no espelho, uma massa disforme e gigantesca se apresentava, como um terrível e ameaçador monstro de borracha japonês. Enfrentando Ultraman e a Patrulha Científica.... Sorri novamente. Do terror à ficção B.

Levantei-me. E de frente ao espelho acusador fui fazendo um striptease reverso. Não tinha me atinado ao meu samba-canção, ridículo nas mãos, enorme e branco. Uma faixa larga e alva isolando as pernas do resto do corpo. Mais ridículo ao prestar atenção à ginástica inconsciente e diária para vestí-la. Camiseta pólo amarela e drasticamente adaptada com o passar do tempo, desgastada e pressionada, com a missão ingrata de cobrir uma montanha. Para vestir o jeans desbotado, sento-me novamente. Para abotoá-lo, estou de pé saltitante. Começo a transpirar. Cinto, o item mais fácil, embora assustador, mais parecendo uma anaconda interminavelmente perfurada. Quanto às meias e aos sapatos, imaginem vocês. Sr. Incrível !

Decisão solene: dieta e exercícios. Sacrifício válido para resgatar a visão seqüestrada de meu amigo isolado.

Um filme de terror então se instala na tela de minha mente. Sem comerciais e diferentes do espírito de uma sessão da tarde juvenil, imagens de vegetais insípidos e pálidos com caras tristonhas, carnes magras destemperadas, uma seleção colorida e alegre de saladas infindáveis de um cardápio pobre e enfadonho. As massas sedutoras e arredondadas nadando em seus molhos inesquecíveis, o porpetone de Nápoli, aquele fantástico pastel de feira de domingo, coxinhas generosas e churros fálicos adocicados, aquele pão com mortadela do Mercadão, o bolinho de bacalhau do Léo, a pizza da família Donato..... desapareceram ! Neste programa são passados como indesejáveis flashbacks, intencionalmente distorcidos, em preto e branco. E, se não bastasse, uma animação caprichada de um enorme "X" em vivo vermelho. O sabor da bureka do Bom Retiro, o zabaione da Moóca, doces e tortas da Oscar Freire, o mais frugal e popular milkshake de ovomaltine do Bob's, agora um sonho distante, borrado e proibido. Minha cabeça gira, tonta de fome, abatida pela tortura que me aguarda. Pode não parecer tão ruim, mas a antecipação angustia.

Sou agora um hamster, enorme e balofo, ridículo, com calção, camiseta e tênis. Suando, correndo, sem destino, e com uma paisagem estática ao meu redor. Asfixiante, ao som de bate-estacas sincopada, em uma discussão sem fim com uma letra marciana recitada por um rapper gringo qualquer. Entendo agora a situação: o programa apresenta o mais inútil aparato de tortura moderno, elétrico, não poluente. Mas, diferentemente do que poderia imaginar, nesta corrida desesperada e sem sentido, não há, ao menos, um generoso pedaço de camembert ao meu alcance. O pesadelo continua ao focalizar diferentes aparelhos, desenhados especialmente para torturas específicas, visando determinadas partes do corpo. De todo o corpo. Emagrecê-lo a todo custo é a missâo determinada, impossivel. É a chamada tortura localizada, especializada, algumas com pós-graduação e doutorado. Após o suadouro, o acentuado sabor da fome, muita fome; fome crônica agora.

Ao final, um juízo: um equipamento severo, incorruptível, frio e delator. Com seus enormes dígitos vermelhos acusadores apresenta a conta de meus esforços sobre-humanos: 117.

Penso irritado: quanta bobagem!
Desligo a TV.
Vou dormir de olho no meu amigo do andar de baixo.


[neuras - 24.I.2K5]

sexta-feira, janeiro 14, 2005

Notícias do Jornal

Acordo cedo. Sem música. Um sol alegre e radiante me espera.
No caminho para o metrô uma rápida troca de palavras com a jornaleira quarentona de olhos verdes.
Uma olhadela incontida no prêmio da mega-sena anunciado em cartaz da esquina. O número escrito na tabuleta, esperança renovada, que quando pequeno causa inveja do ganhador anterior e, quando acumulado, provoca uma ilusão desproporcional, fuga fácil de nossas vidas medíocres.

Determinado, sigo meu caminho. Observo as pessoas que, assim como eu, iniciam a sua jornada de trabalho ou de outras obrigações tipicamente paulistanas: feira, supermercado, shopping, igreja, coisas divertidas assim.

Embora seja sábado, dia tão esperado e proclamado pelo brasileiro, somente as crianças com quem cruzo escancaram um sorriso. No metrô uma fila enorme e sombria chama a minha atenção. Penso treinado: aumento de passagem, será? No interior sufocante e monótono do trem pessoas mudas e inexpressivas trocam olhares sem se ver. No meio deste marasmo uma morena deslumbrante de peitos fartos, sincronicamente balouçantes, cabelos curtos, longas pernas. Com jeito safado me observa. Enormes olhos de predadora: T'Pol. Um forte calor me invade e me acende. Sintoma de que meus devaneios estão de volta...

Para a minha salvação ou contínua desgraça o trem pára na minha estação destino.
Ao sair ainda olho esperançoso para a senhora triste de rosto murcho e cansado.
Encontro-me então em um local, velho conhecido meu, que não deixa ainda de me impressionar, produto arquitetônico simbionte, templo de orações conflitantes de poder e negação.

Durante toda a manhã cumpro com as minhas obrigações religiosas prestando homenagens insinceras através do culto semanal às cinco estrelas de um firmamento de concreto. Estrelas próximas e alinhadas. Falsas.

Corte rápido. Estou em casa. Ocupando os espaços de forma vigorosa o movimento inicial da 1a. de Mahler. Sentado confortavelmente em meu trono monástico (da sala !) leio as notícias do tablóide.
Coincidência, ou não, a primeira reportagem que chama os meus olhos descreve o sucesso da chegada da sonda Huygens ao solo da Titã. Outra estrela, não, uma lua. Desta vez, desalinhada e distante - real e misteriosa.

Alterna-se o canto do cuco aos apelos das trompas. Emoção.

Num ambiente inóspito, com cerca de 200 graus negativos de temperatura, e quase sete anos após o seu lançamento, um pouso exitoso. A excitação de uma realização sem precedentes e o orgulho de ser humano.
Devoro com entusiasmo as diversas colunas de letras miúdas.
Levanto minha sobrancelha e saúdo como um vulcano: fascinante!

Animado com a notícia viro a página. A emoção prontamente é substituída pela angústia.
O terceiro movimento se inicia, grave, em tom menor - tom macabro.
Das proximidades de Saturno sou atirado ao clima quente do Oriente Médio. O arrogante Sharon não quer brincar mais com Abbas e bloqueia a Faixa de Gaza. As acusações de sempre transferidas de um Arafat "desaparecido" para um Abbas recém-eleito. Com a cabeça progressista no espaço explorando literalmente novos mundos e a incapacidade de ocuparmos os nossos espaços nativos, minados continuamente pela desconfiança, insensatez e violência. A marcha fúnebre se faz ouvida como se invocasse a presença dos Jedis.

Pela janela aberta o sol insiste em sua fé.

O início do 4o. movimento, dramático, e apontando os caminhos do inferno, parece dialogar com o rosto atormentado de Charles enfrentando os protestos da opinião pública na página ao lado. Explico: o mais novo bobo da corte inglês, o incipiente príncipe, Harry, não o divertido Potter, filho do insípido herdeiro britânico, aparece em foto publicada usando uniforme nazista com suástica e tudo. Um primor de inteligência e de sintonia com a história recente. Por muito pouco não apareceu com o uniforme negro da SS, fazendo uma dobradinha de mal gosto com Himmler em uma balada noturna. A revolta de muitos superando o deleite de poucos.
Mas o final glorioso da sinfonia parece absolver o pequeno príncipe, já que este parece ter herdado o talento para gafes do avô Philip. Dentre inúmeros constrangimentos reais o jornal cita "a visita do avô à Escócia, onde perguntou ao instrutor de uma auto-escola como ele mantinha os alunos sóbrios o tempo suficiente para que passassem no exame de direção, ou ainda, em outra visita, desta feita à Austrália, onde perguntou a um aborígene se eles ainda atiravam lanças uns nos outros". Como se vê, e discordando da recomendação de Charles de enviar o seu filho à Auschwitz, a família real inteira poderia ser assentada na lua Titã. Devidamente acompanhado de Sharon!

Continuo passeando pelas folhas soltas do jornal e as piadas grosseiras e mal contadas continuam se insinuando à minha paciência. Como num filme, a câmera brinca com imagens longínquas percorrendo o trajeto da nave Cassini. Imagens rolando e freqüentemente congeladas, sob o comando de um diretor anônimo, passando por Vênus, Júpiter..... agora os anéis de Saturno, sua lua maior. A seguir, o planeta azul, fechando em Israel e na Faixa de Gaza, em cortes rápidos, alternando com depoimentos de civis palestinos e israelenses. Atentados radicais. Imagens se desvanecendo. Surge uma suástica tremulando emoldurada por uma Londres embaçada. Londres está sempre embaçada na minha cabeça. Foco os símbolos britânicos, amplio a imagem de Charles ao lado de Blair. Comentários em inglês. Noticiários da BBC. Tablóides sensacionalistas. Distorção sonora. Baixa a rotação. Vozes arrastadas com num fonógrafo descalibrado de um filme psicótico.
Momentos depois a rotação vai se normalizando..... lentamente.....

As palavras audíveis agora estão em português. A câmera mostra o centro de poder verde-amarelo com o congresso, palácios e ministérios. Chego à seção de notícias nacionais. Leio e mais uma vez sou tomado pela incredulidade.
Silêncio no ar. Indefinição para a trilha sonora a escolher: samba ou axé? Marchinhas carnavalescas, talvez...

Novamente o ridículo: o Itamaraty retirou da prova de inglês o caráter obrigatório como forma de expurgar o elitismo da carreira diplomática. Depois da retirada do francês, agora o inglês. Amanhã, o português. É o pensamento minimalista de um metalúrgico deslumbrado: fome "zero", diplomacia muda! O silêncio no escuro.

Esta é a mentalidade reinante em um país que potencializa a desqualificação, admira a falta de escolaridade de seu presidente, e se congratula com uma falsa e populista liderança regional. É a deformação representativa de um estado mental atrofiado do Palácio do Planalto, sustentado por uma arrogância infantil e descabida.
Agora sim encontrei o contraponto ao progresso espacial. O titã Amorim.
Mais uma vez a pactuação com o nivelamento por baixo resultante de tradição da péssima qualidade de nossa educação básica. O governo, dito inovador e progressista, além de não viabilizar um projeto educacional de acesso democrático, decente e de qualidade, se supera com a "popularização" do Itamaraty.
A mediocridade e a ignorância despontando com orgulho, como alternativa ao mundo globalizado, através da dispensa de sua língua franca, instrumento da diplomacia internacional. É burro. É inaceitável. É Brasil.

Som na caixa: Assim falava Zaratustra - Dos habitantes dos mundos ocultos, com a participação especial de Casoy e sua figura angulosa, congelando a sua mais famosa interjeição.

Percebo a dificuldade crescente no simples ato de ler um jornal.
O desgaste emocional: excitação e entusiasmo no espaço infinito. Revolta, impotência e desânimo no Oriente Médio. Perplexidade na Europa. Indignação e vergonha no Brasil.

Numa última olhada, ao fechar o jornal, descubro em um canto de página:
"Metrô e trem ficam mais caros amanhã."

[17.I.2005 - neuras]

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Segunda-feira, dia 10.

Segunda-feira, dia 10.

Combinação inquietante, velho dito popular em um novo ano que apenas se inicia.

Resultado da ineficiência dos amarelinhos não recebi em tempo o boleto de pagamento de uma das inúmeras contas que afloram espontaneamente no escaninho do meu velho apartamento.

Ratifico: não recebi dos amarelinhos o boleto para pagamento no dia 10, segunda-feira.

Prontamente, seguindo o instinto-primeiro de minha ingenuidade, acesso o site da emissora do boleto com a esperança de impressão de uma 2a. via.

Resultado negro: não disponível.

Apelo então para o 0800, destacado em azul-escuro sobre fundo amarelo, para informações, desejoso de obter ao menos um fax da 2a. via ou a concessão de um boleto com nova data de vencimento.
A robótica atendente, processador de 3 bits, com a conhecida tonalidade de voz laranja-ocre irritante, informa o único procedimento existente para o indesejável Cliente que quer pagar: dirigir-se ainda hoje a uma agência, de cor também amarela, e responsável pela gestão de recebimentos, para que possa ser emitida a 2a. via. Acrescenta ainda, que devo ir pessoalmente com os dados cadastrais e, se possível, enfatiza, com o boleto do mês passado. Apenas para facilitar... emenda.

Respiro fundo resignado.

Preparo-me para a missão como um coadjuvante de Tom Cruise. Sigo contrariado em meu carro para a agência mais próxima.

Ao tentar entrar na agência sou barrado pelo complexo metálico-vítreo e concluo que não sou bem-vindo. Possivelmente, fora descoberto em minha missão em tempos terroristas. Sou obrigado a dispor de meus objetos incomuns de agente condenado: celular, chaves, canetas. Sou enfim aprovado pelo Sr. Detector de Metais e pelo ameaçador vigilante de azul.

Subo as escadas e entre inúmeros cartazes amarelos de propaganda de produtos e serviços da agência retiro uma senha branca com número negro que indica a minha posição: 253.

Sento-me na única cadeira disponível entre tantas outras ocupadas por pessoas infelizes de diversas cores e um único mal-humor. Aguardo tentando me distrair, lendo folhetos ilustrados com pessoas bonitas e satisfeitas propagando eficiência, rapidez e simpatia. Levanto os meus olhos e confiro os detalhes da mensagem ao meu redor. São quatro mesas de atendimento que, com o passar do tempo, percebi serem apenas duas em operação funcional. Duas mulheres. Uma magra, outra fofa. Uma loira, outra oriental. Ambas concentradas. Pergunto-me: ar-condicionado ?

Trinta e três minutos depois sou atendido pela loira magra que me recebe com falso sorriso de dentes irregulares. Explico a ela o triste enredo em que sou protagonista. Seu sorriso permanece pendurado. Após inúmeras consultas entre telas e telas que desfilam no terminal mágico em sua mesa, diagnostica: é possível sim a emissão de 2a. via. E o meu procedimento fora totalmente correto, acrescenta. Sou agraciado com o novo boleto impresso em branco e preto acompanhado de um sorriso renovado. Pergunto então se posso pagá-lo pela internet. O sorriso se desmancha e é substituído por um conflito entre dois neurônios que a leva quase ao desmaio. Recompõe-se após o consenso micro-cerebral e se dirige às duas mesas restantes ocupadas por dois homens. Dois engravatados sérios. Dois japoneses pouco amistosos provenientes de velhos seriados desbotados. O mesmo corte de cabelo, mesma estatura, ambos de uma mesma linha de produção. Ocupadíssimos. Um deles então interrompe suas tarefas, de notada importância, e com ar enfadonho murmura uma negativa. De volta ao seu posto a atendente repassa a negativa. Pergunto então se posso pagar em outro banco de diferente cor, vermelho talvez. Os dois neurônios se congratulam felizes: naturalmente que não ! Insisto desesperançado se posso pagar com cheque... Um dos neurônios, o mais sádico, feliz, então adverte: apenas em dinheiro !

Como a realidade pode ser negra em um mundo amarelo-ouro...

Abro a minha magra carteira e confirmo não ter a quantia necessária. Resignado deixo a agência do Buraco do Brasil e alcanço as ruas da Liberdade ! Contando de três em três rumo à minha agência azul-laranja para sacar o dinheiro necessário. Antes fosse verde-real. Retorno à agência amarela, tomo a benção do Sr. Detector e me coloco na última posição de uma fila única e interminável para o pagamento. Não sei ao certo o motivo das imagens de abatedouro no formato de filmes da década de 40 que desfilam em minha mente. Fila única com diversas corcovas que desembocam em quatro caixas, três operacionais, uma com estagiária. Para ser franco não é única fila existente. Um acesso lateral para deficientes, grávidas e portadores de RG muito antigo.

Vejo como estou despreparado para a missão. Observo uma adolescente alienada a tudo, com seu fone de ouvido, dançando três posições à frente. Não tenho a companhia de Alejandra e Martín e de sua trama portenha, nem das notícias destemperadas de meu amigo metalúrgico em nosso melodrama nacional. Assim, tudo observo. Ao meu lado, em uma circunvolução futura, um senhor engravatado e transpirando lê a bíblia. Adivinho que esteja lendo sobre Jó ou como as muralhas de Jericó foram derrubadas. Muito sério e compenetrado. Parece ter lido desde a gênese neste espaço amarelo. Ora. Treze minutos depois e a fila não avança, encomprida. Ouço reclamações de toda sorte: do tratamento que nos é dispensado, da insuficiência de atendentes, do calor, das injustiças sociais, das diferenças nipo-brasileiras e é claro, do timão. Os caixas parecem tudo a assistir e numa satisfação íntima mal contida compartilham este espaço sadicamente, microcosmo de um país azul anil.

O tempo passa e o calor aumenta. Assim como a fila.

Um rapaz fala nervosamente ao celular. Informa ao seu supervisor que não será possível ir a outros lugares, pois no mínimo encontram-se vinte pessoas em posição de vantagem na fila. Exagera dizendo que não é possível enxergar os caixas. Dramatiza a situação. E ao se dar conta de minha intrusão me dá uma piscadela cúmplice.

Alguns desistem. Outros tentam furar a fila. Tudo parece passar em câmera lenta e embaçada. No filme em branco e preto: alienação, fé religiosa, enganação.

Noventa e três minutos depois uma leve palpitação me invade. Sou o número 1 ! Sou chamado pelo caixa 3? Um senhor gordo, muito gordo, grandes orelhas, olhos miúdos atrás de lentes enormes e quadradas. Sua em profusão e tem aparência pouco esperta. Terei problemas penso profeticamente. Entrego o boleto emitido. Ele tenta ler. Afasta e aproxima o papel de suas lentes grossas e sujas. Apoio minha cabeça nas mãos e olho para baixo a fim de evitar esta triste cena. Olha para o terminal por sobre os óculos, faz uma careta infantil e começa a digitar com os seus dedos gordos no teclado numérico. Imprime, registra, reimprime. Pausa. Processa. Nova pausa. Evita o meu olhar severo. Sente a solidão de um único neurônio. Mira o teto e a seguir os seus companheiros de infortúnio. Levanta-se. Pede orientação à japonesa sênior do caixa 1. Senta-se. Relê. Ativa o seu neurônio. Desiste. Aguarda. A japonesa sênior com uma enorme má vontade concede uma passada de seu cartão sênior amarelo. O gordo atendente sorri. Recomeça o processo. Anula o impresso. Rasura com sua caneta azul o registro no boleto. Calor mais suor. Imprime, registra, reimprime. Fim do processo. Recebo o canhoto e penso em agradecer. Só penso. Olho com pesar o tamanho da fila inalterada.

Três horas depois, me dou conta do custo Brasil azul canil. Tomo as ruas da Liberdade vermelha e branca. Três horas desperdiçadas de minha curta existência. Não sei se entendi bem. Três horas.

Ao voltar para casa encontro no meu escaninho o boleto que os amarelinhos me deixaram de presente.
A noite é negra.

[11.I.2K5 - neuras]