quarta-feira, abril 11, 2007

O Suicídio dos Neurônios

Eduardo era um rapaz aparentemente normal. De fácil trato, hábitos simples e amigo da rapaziada. Sempre solícito, cordato, às vezes pedante; nem bonito, nem muito feio, estatura média, cabelos negros e curtos, magro. Aquele tipo que as mães consideram um bom rapaz, digo, inofensivo, e que para as outras mulheres passa totalmente desapercebido, invisível. Estudante do nível médio estava se preparando para o vestibular. Queria ser médico, um neurocirurgião. Famoso e bem sucedido, claro! Não que pertencesse a uma família tradicional de médicos ou quem sabe, de veterinários. De forma alguma; seu pai era comerciante, tinha um pequeno mercado no velho Brás onde trabalhava também a sua mãe e o seu tio caçula. Tinha duas irmãs menores, estudantes, vivas e extrovertidas. Falantes, sempre instigantes e melindrosas, agitadas ao extremo. Eduardo, pelo contrário, era tranqüilo, fala mansa, nem namorada tinha. Gostava de livros e era precoce para a sua idade; gostava de Machado e os beatniks. Ouvia no seu precário tocador de MP3 os noturnos de Chopin deixando-se sonhar com a misteriosa Capitu. Era igualmente misterioso de onde advinha este gosto tão peculiar, tão distante da mediocridade dos rapazes de sua idade, origem e com a sua formação. Era uma total negação para os esportes, qualquer esporte. Diria até uma inaptidão extraordinária para os esportes, assombrosa. Um verdadeiro "case", como apresentado em artigos de administração e gestão. Além disso, não era nem um pouco competitivo, apesar de gostar de videogames, sobretudo os relacionados à estratégia. Passava longas horas em frente à tela do seu computador, janela para um mundo privativo, onde delirava virtualmente em seu pequeno quarto. Lia avidamente as informações do mundo real, ouvia e conhecia músicas de diferentes partes do mundo e assistia a vídeos amadores e semiprofissionais de temáticas tão variadas, que absorvia com interesse instintivo, como uma enorme esponja. Queria poder viajar, conhecer diferentes culturas, conversar em outras línguas com pessoas de exóticos e distantes locais. Além disso, gostava de assistir a todo tipo de anime japonês, um tanto ingênuo e lírico, contrastando com a crueza dos filmes de tribunais, advogados e juízes, que acompanhando, tentava arduamente descobrir a trama juntando pacientemente as poucas pistas entreabertas por roteiristas manipuladores. Culpado ou inocente? Na maioria das vezes acertava o desfecho.

Complementava o seu tempo estudando. Sabia perfeitamente que o ensino público, decadente e abandonado, o deixava em grande desvantagem pela seleção punitiva do vestibular. Não acreditava nas lorotas de políticos em época de eleição e muito menos quando premiados pela ignorância, ainda que democrática. Sentia na pele, no dia a dia, a panfletagem vazia sobre a educação pública e as descaradas promessas de investimentos em programas consistentes e progressistas, imediatamente esquecidas após os votos coletados de seduzidos e enganados eleitores. Freqüentava as aulas do cursinho como os fiéis aos cultos religiosos. Percebia com lucidez a enorme lacuna provocada por anos inconseqüentes de aulas desperdiçadas por professores despreparados e exaustos a cumprir um programa inadequado; a exibir continuamente a ausência de recursos didáticos e as suas próprias deficiências. Mas tudo isso não o impedia de acreditar em um futuro melhor; era por natureza um otimista. E para isso se dedicava a superar o seu histórico estudantil sofrível. Gostava especialmente de conhecer a química e a biologia, matérias com as quais se identificava. Sentia certa dificuldade no formalismo das fórmulas e equações químicas que traduziam os conceitos facilmente assimilados e, em particular, dos nomes impronunciáveis da infinidade de bactérias, vírus e espécies apresentadas em uma complexa classificação, muitas vezes cansativa e desestimulante. Eduardo realmente contava com um currículo inicial, no mínimo curioso, de um rapaz aparentemente normal.

De tudo que lia na Internet, o que mais o interessava, objeto de seus estudos e leituras, eram os neurônios. Tinha uma fascinação especial e inexplicável por estas células que habitam em nosso corpo, tal como uma gigantesca comunidade de formigas, formando o que as suas apostilas de cursinho denominavam sistema nervoso. Intrigava-o como funcionava o mecanismo, aparentemente caótico, de como bilhões de minúsculas entidades processavam e encaminhavam as informações necessárias ao restante do corpo de uma forma organizada e síncrona. Sem colisões ou perda de qualidade dos dados em uma indescritível teia de aranha multidimensional, quase infinita. Via estes agentes, de óculos escuros, quase secretos, responsáveis pela transmissão de mensagens específicas através de processos eletroquímicos, ativando e contatando inúmeros centros de informação, responsáveis pela distribuição de códigos, altamente secretos para os seus destinatários. Individualmente, o neurônio-agente ilustrado em seus apontamentos, se parecia com um alienígena apavorante. Possuía uma cabeleira de dendritos que lembrava uma Medeia de um único olho, que a tudo via e processava. O esbelto axônio, responsável pela condução dos impulsos nervosos, formava o restante do corpo desta figura bizarra. Coletivamente, pareciam estar em uma frenética festa embalada incessantemente por um fluxo de drogas, sexo e rock’n’roll. O prazer orgástico resultava em sinapses de altíssima tensão na comunhão de agentes que pareciam ser escolhidos aleatoriamente. Embora nesta festa todos os agentes se assemelhassem e pertencessem à mesma corporação, eram designados para distintas missões, críticas e altamente especializadas. Mas dependendo das condições adversas destas missões poderiam assumir diferentes funções. Este cenário era para ele particularmente fascinante. Passava horas estudando. A cada nova descoberta tornava um pouco mais nítido o filme que se delineava em sua mente. Para isso, às vezes usava recursos de computação gráfica, outras vezes, personagens de anime japonês. Quando seriamente questionado, visualizava as cenas de tribunais com um agente seu como réu. Entretanto, uma coisa o preocupava: os neurônios não se regeneram, isto é, enquanto outras células são renovadas, os neurônios existentes são os mesmos que possuíamos quando mais jovens. Além disso, à medida que envelhecemos os neurônios vão morrendo. Era difícil de acreditar na destruição dos seus pequenos amigos, verdadeiros agentes em áreas essenciais do organismo, responsáveis por manter a capacidade de planejamento e por centros que controlam a percepção de estímulos sensoriais. Como resultado prático percebia que, de modo geral, as pessoas mais idosas tinham maior dificuldade na memorização de fatos, nomes e lugares, menor velocidade no processamento e associação de informações, raciocínio lógico e outras disfunções potencialmente provocadas pelo desaparecimento de neurônios e pelo enferrujamento dos contatos que provocam as tais sinapses: a deterioração progressiva do sistema nervoso central. Como resultado crítico deste processo, associava doenças assustadoras, tais como Alzheimer e Parkinson. Claro que este assunto era polêmico, muito longe de algo definitivo. Lia que estudos recentes, feitos por pesquisadores sérios ao redor do mundo, estavam indo de encontro ao dogma da morte continuada dos neurônios ao longo da vida. Mas por precaução e por todo este contexto que se apresentava é que Eduardo decidira cuidar de seus queridos neurônios afastando-se de qualquer tipo de droga ou substância química que pudesse comprometê-los. Estava também decidido a exercitá-los mantendo-os dispostos e saudáveis. Componentes de uma máquina fantástica que aprendia a cada dia a respeitar e a admirar mais. Gostava daquilo que estava alojado em sua cabeça. Dormia desta forma tranqüilo. Reorganizava todo o seu arquivo de dados e emoções nos escaninhos do seu cérebro e os disponibilizava para o dia seguinte.

Por outro lado, tratando-se do seu particular organismo, os seus hormônios estavam em franca ebulição e clamavam desesperadamente pelo contato com o sexo oposto. Entretanto, tinha uma dificuldade incomum com as garotas de qualquer espécie ou tribo. Talvez, as espinhas que eclodiam em seu rosto, como pequenas erupções em solo árido de rala vegetação, colaborassem para a construção da barreira invisível que automaticamente se formava ao interagir com um ser feminino. Como todo adolescente, estava envolvido até a medula do seu ser com a auto-afirmação que brigava diariamente com a sua insegurança e pouca auto-estima. E neste caso, os seus amigos neurônios de nada lhe serviam. Possuía, sem dúvida, um conteúdo acima da média, mas o que realmente o atrapalhava era a sua interface, muito longe do monitor sofisticado com milhões de pontos coloridos e do sistema de som de alta-fidelidade que comprara economizando mês após mês fazendo alguns bicos aqui e ali. Para completar este triste quadro era avesso às festinhas e baladas caçadoras para as quais os seus amigos pseudopredadores insistiam em convidá-lo. Este comportamento estranho acabava por isolá-lo nos períodos noturnos que desfrutava mais e mais na companhia de seu computador. Atravessava noites seguidas, insone. Seus pais naturalmente não gostavam de vê-lo em seu quarto hipnotizado por telas com hieróglifos egípcios que seguramente não compreendiam. Insistentemente queriam que participasse mais da vida familiar se envolvendo com as tramas da novela das oito, indignando-se com as notícias do Jornal Nacional ou torcendo por um dos participantes do Big Brother... Suas irmãzinhas se deliciavam, juntamente com sua mãe, em ler e discutir a vida das celebridades estampadas nas revistas Caras, Contigo e Comigo. Passavam horas discutindo o visual das peruas e "bunitões". Atores, cantoras, modelos faziam parte da realidade feminina da casa de Eduardo. Para contrabalançar, seu pai conhecia todos os times de futebol, jogadores e técnicos, os resultados dos cinco últimos campeonatos regionais e nacionais. Além, é claro, do desenrolar do futebol italiano, inglês, francês, alemão, turco, coreano, árabe... Futebol globalizado e total. Mantinha no seu "escritório", nas paredes desbotadas e descascadas, tabelas de todos os campeonatos em andamento. Cartazes de um bando de marmanjos, enfileirados e abraçados, idolatrando uma bola sob as suas chuteiras. Uma verdadeira central de informações futebolísticas, da qual se orgulhava e, como especialista, exibia o seu conhecimento entre uma cerveja e outra, rodeados de outros especialistas, amigos seus, no bar do Bilbo.

Numa das inúmeras tentativas de se achegar aos seus familiares e participar destas atividades afetivas percebeu em uma noite, com grande surpresa, que ouvia alguns gritos tímidos, sufocados. Olhou ao redor assustado e percebeu que estes gritos aumentavam em intensidade e desespero na medida em que as conversas se tornavam acaloradas. A princípio pensou estar imaginando coisas e, concentrado em repetir a experiência, desligou-se das conversas dos seus familiares, da televisão que a todos enganava. Nada mais ouviu. Perturbado, subiu as escadas para o seu quarto, se jogou em sua cama e retomou a sua amizade pelo Bentinho. Adormeceu tranqüilo.

Na manhã seguinte não se lembrava mais da bizarra sensação da noite anterior. Tomou apressadamente o seu café e, quase correndo, pois estava atrasado, se dirigiu ao ponto do ônibus que o levaria ao cursinho. Logo ao entrar, sentou-se ao lado do Paulo, seu colega de turma, de costas para a janela do ônibus que seguia rápido pelas ruas do seu bairro. Começaram a conversar sobre as inscrições que fariam para o vestibular, as datas das provas, a insegurança da reprovação. Inabaláveis expectativas de um futuro solar. Seu amigo sabia que não gostava de chicletes, por isso abriu um tablete e, sem oferecê-lo, o arremessou boca adentro, de forma deselegante e juvenil. Instantaneamente, começou a ouvir gritos abafados e agudos, os mesmos da noite anterior. Olhou assustado para o seu colega que, sem nada entender, continuou a massacrar o seu chiclete rosa-grudento, escancarando a sua bocarra; agora fixava o seu olhar em um par de avantajados peitos pertencentes a uma morena em pé a sua frente. Chacoalhavam, oprimidos pela rede de uma blusa de lycra vermelha tentando escapulir por um decote generoso que deixava antever um precipício profundo e delicioso. Apesar dos ruídos lamuriantes, Eduardo também se solidarizou com a dupla aprisionada e desejou ardentemente que fossem libertados. Infelizmente, a morena de olhos astutos retribuiu seus inflamados olhares com uma atitude repressora, gélida e implacável, quebrando de vez aquele momento encantado. Agora novos gritos desesperados chamavam a atenção do pobre Eduardo. Do banco perpendicular ao seu um rapaz de óculos e gravata frouxa lia concentrado. As lamentações pareciam originar de dentro da cabeça deste atento leitor. Nada compreendia, mas num relance provocado pela sua curiosidade viu a capa do livro identificando-o: o preferido das eternas candidatas à Miss Brasil. Lembrava disso, pois no dia anterior sua irmã Joana havia comentado com certo despeito, o porte destas cinderelas deslumbradas que contrastavam com o declarado micro-cérebro ou, quem sabe, impressionante sagacidade não declarada. O ardente desejo pela paz mundial, expresso por todas elas em entrevistas ocas e didáticas, reforçadas pelas descobertas transcendentais de um autodenominado mago com conhecimentos de alquimia, considerado um fenômeno literário. A mesma forma pneumática sem conteúdo. De certo havia uma forte conexão entre as beldades de concursos incompreensíveis e o jovem leitor do ônibus. Começou a achar graça destas suas associações e das copiosas lamúrias que ouvia. Era surreal, mas engraçado. Imediatamente compreendeu, que ao seu redor, em maior ou menor intensidade, ouvia estes gritos agudos, que mais se pareciam com sons de donzelas desmaiando. Parou de se perguntar pelo inusitado da situação totalmente ignorada pelo seu companheiro de percurso. Agora, prestava atenção no que as pessoas faziam, priorizadas pela angústia dos gritos desvanecentes no interior do ônibus. Os mais ruidosos e doídos eram provenientes de um rapaz de agasalho esportivo próximo à porta de entrada que se chacoalhava de modo hilário. Fazia também movimentos com a boca, fechava os olhos e de vez em quando se contorcia como se estivesse possuído por uma entidade maligna. Já assistira a alguns filmes deste tipo, todos horríveis. Percebeu, então, que dos ouvidos daquele ser enfeitiçado saíam fios brancos que se esvaíam misteriosamente por dentro de sua roupa. Era como se fossem finos tubos irrigados por algum tipo de soro venenoso que inundava as suas orelhas. Misturados aos lamentos identificou inúmeros ruídos: palavras soltas sem sentido, guinchos, algum tipo de percussão selvagem; tudo isso embalava a triste figura que revirava os olhos em aparente transe. Pensou com certa ironia em como as pessoas mantinham uma relação masoquista com elas mesmas e como se maltratavam em diferentes níveis.

Do lado de trás deste micro universo penitente seus olhos convergiram para uma freira que lia fervorosamente o pequeno livro negro. As pessoas da tribo religiosa sempre foram intrigantes e sombrias para Eduardo: monges carecas de sandálias, freiras com trajes islâmicos intransponíveis, muçulmanos com turbantes e extensas barbas, ortodoxos em preto com trancinhas e chapéus. Embora a sua família pertencesse à religião "católica não praticante", não possuía laços estreitos com qualquer tipo de ritual cristão. Nem sequer se lembrava de rezar ou sentia falta de crenças de espécie alguma. Era uma pessoa do bem e evitava prejudicar qualquer ser vivo. Simples, efetiva. Encarava com exotismo e simples curiosidade as imagens de monastérios, mesquitas, templos e pagodas, sinagogas e catedrais espalhadas pelo mundo que reuniam multidões em busca de algo exterior para lhes preencher a mediocridade do cotidiano, a fornecer esperança por dias melhores, a fé inelutável em uma alma, espírito ou algo similar, essencial e imortal. A crença inabalável em um ser superior, justo e acima de todos os homens que, em algum momento da eternidade, vá punir os maus e premiar os bons em esferas etéreas como o inferno e o céu. E na sua momentânea e concentrada divagação admirava a criatividade das pessoas na construção de mitos e ídolos, absolutamente perfeitos, para serem amados e entronizados. Moldados minuciosamente através de estórias e parábolas, reinventadas e aprimoradas, geração após geração, com feroz determinação. Aterrorizando, desde a tenra idade, com a culpa pela imperfeição, punindo exemplarmente, manipulando descaradamente. A verdadeira trava ignorante do progresso social; inibindo o pensar, o questionar. O contra-argumentar baseado em evidências científicas e históricas. Usando o raciocínio, puro e complexo, ao contrário do exótico e simples acreditar. Estimular apenas as suas respeitosas células cinzentas. Induzir a intensas e saudáveis sinapses de seus amigos neurônios. Mas ao mesmo tempo, e perfeitamente compreensível, a necessidade pelo reconhecimento de ser o humano, um ser especial, imortal; acima da finitude inquestionável. Limite da morte sombria e injusta. Punitiva e humilhante. Coloca em evidência o processo evolucionista das espécies e a magnitude de sua importância. Mas, o indivíduo perece, fornecendo a sua contribuição seletiva ao seu coletivo. É razoável, porém angustiante, insuportável. É natural que equipes intercorporais desenvolvam uma solução alternativa verossímil, vendável por todas as religiões em diferentes embalagens, sedutoras de acordo com cada doutrina, modelada pela herança cultural de cada povo: a alma. Uma digna resposta unificadora, reconfortante e libertadora. Talvez iniciada nos tempos imemoriais pela aguda tristeza sentida pela perda de entes queridos. A impossibilidade de reencontrá-los, de revivê-los apenas na lembrança infiel dos que partilharam de momentos comuns. O egoísmo da dor pela ausência das pessoas amadas. A visão da própria morte, do ponto negro final.

Naquele momento, ao olhar a solitária freira, era evidente que Eduardo não teorizava ou fazia qualquer análise desta natureza. Apenas sentia o ambiente do interior do seu ônibus diário; observava as pessoas, posturas e ações, tentando adivinhar a história de cada uma delas, imaginando as suas alegrias e privações. Apenas os gritos abafados e próximos distraíam os seus pensamentos. Já estava se habituando. Eram gritos e gemidos de seres que desfaleciam com grande sofrimento, desapontamento e angústia. De morte aos soluços. Talvez fosse um atributo que o candidatasse ao próximo passo na evolução. Uma alteração genética de origem desconhecida. Como na série "Heroes". Divertiu-se com este pensamento. Poderia também embarcar nesta idéia e fundar uma nova religião: heróica evolucionista ! Desenhava seus novos trajes... ouviu a própria risada, espantado.

De repente virou o seu rosto. Paulo lia um exemplar do Spawn ao seu lado. Ainda faltavam uns vinte minutos até o seu destino imediato. Respirou fundo, e a mando dos seus vorazes hormônios, voltou então a se concentrar nos movimentos hipnóticos dos peitos fugitivos daquela morena deliciosa à sua frente. Sorriu e, imediatamente, deixou de ouvir os neurônios suicidas....

sábado, abril 07, 2007

A Primeira Valisère...

Acordo no domingo já ensolarado, decidido. Tomo um rápido banho para afugentar o sonho confuso e persistente. Jeans surrado e camiseta preta básica. Abro as janelas e um ar fresco, verde e outonal invade-me por todos os poros. Sensação agradável, limpa e leve. Um café preparado com esmero, resultado de contínua prática e cuidadosas experimentações. Para apreciadores; embora solitário, não menos prazeroso. Concentro-me na xícara de cerâmica, cores e texturas. Privilegio o sofisticado, mas desprezado olfato. De forma imaginária ouço Liesgen cantando perante o pai rabugento; e todos os meus sentidos concordam com ela enquanto me sento na varanda. Um rápido olhar nas principais notícias do jornal, a mesma indignação e a vergonha de ser brasileiro. A voz de baixo de Schlendrian espanta por alguns momentos de minha mente os eternos problemas de um país historicamente irresponsável. Calço as velhas botas sem esforço e instantes depois ganho as escadas que desço sem pressa assobiando.

No térreo saudações cordiais. Respiro fundo ao abrir o portão de grade escura, a rua ainda deserta, a escola em frente temporariamente abandonada. Presto atenção às velhas árvores, sobreviventes das últimas tempestades da estação. Uma vizinha lava o quintal mecanicamente. Portões escancarados deixam seu negro cão perambular pela calçada em uma exploração tímida, seu prêmio dominical. Abana o rabo e me oferece uma bola de borracha azul babada. Afago a sua cabeça e me alegro com a sua ingênua felicidade. Com a minha ingênua felicidade.

Caminho até a estação de metrô. Escadas rolantes. O forte vento de um túnel conhecido. Bilhete único; catracas vencidas. Escadas imóveis. Plataforma abafada e úmida. Vagão repleto de trajes de domingo encaminhando-se para destinos usuais de domingo. Baldeação para a linha vermelha. Muitas escadas depois e me encontro com o velho centro. Hoje tão mudado e cheio de boas intenções de revitalização, como o país, mas ainda mal cheiroso e sujo, como o país. Pessoas ainda dormem acomodadas sob batentes de prédios velhos e decadentes. Outras, de modo agressivo, se estendem no meio da calçada como lombadas humanas, obstáculos aos transeuntes, envoltos em um sono profundo, largado, alcoolizado. Um pouco mais à frente, meio sonâmbulo, um maltrapilho urina à vontade em seu banheiro a céu aberto. As antigas lojas já estão com as suas portas onduladas abertas. Na fronteira com a calçada encontram-se os funcionários eleitos por voto gerencial para mais uma jornada domingueira de vendas. Seus rostos exteriorizam cansaço e desesperança. Apenas alguns, animados, comentam o futebol perdido da tarde anterior, fazendo piadas do time alvinegro, popular e sofredor.

Pelo caminho, ao contrário dos demais dias da semana, a ausência das familiares quinquilharias contrabandeadas e pirateadas expostas pela tribo dos ambulantes da cidade. Poucos carros parados na Xavier de Toledo, alguns táxis. Uma carroça carregada e arriada ao lado de seu motorista concentrado na árdua tarefa de recolher material reciclável. Rapidamente a imagem do Ramos de Azevedo estampada em um paredão de televisores, sendo entrevistado por uma emissora de TV, comentando as suas obras mais famosas, o estado atual do centro e as reformas da Praça da República, Pinacoteca, Júlio Prestes e do Theatro Municipal, meu destino.

Parada final: Morro do Chá. De frente à mini Ópera de Paris, o teatro simplesmente me encanta. De mãos dadas com a minha mãe aguardo o sinal verde para atravessar a rua que nos separa do Mappin com suas enormes vitrines. Aos domingos naturalmente fechada; já a conhecia das poucas vezes em que lá estivera a subir e a descer nos seus apertados elevadores rodeado de pessoas sempre inchadas e ansiosas. O que eu mais curtia nestas viagens verticais era o anúncio monocórdico das atrações escondidas em cada andar daquele enorme edifício em que facilmente eu me perdia. Ficava ao mesmo tempo admirado e com pena da mocinha que passava a sua vida declamando para um pequeno público por alguns minutos. Era um lugar meio assustador: grande e lotado de pessoas. Abafado também. Um exército de atendentes em branco e verde, filas nos caixas. Mas hoje não havia qualquer agito. Apenas as vitrines exibiam grande variedade de eletrodomésticos, sofás, mesas e cadeiras, eletrônicos. Algumas pessoas a sonhar e a calcular.

Do teatro, as grandes escadarias reunindo já um grande número de pessoas conversam animadamente. Outras parecem aguardar os seus pares procurando com os olhos figuras amigas. Subo vagarosamente os degraus tentando memorizar tudo o que os meus sentidos tentam decifrar de forma desordenada e contínua. Tudo é encantador e impressionante: a própria construção com seus traços renascentistas barrocos, a minha introdução a este seleto grupo de pessoas acostumadas a freqüentar este mundo quase intransponível da música erudita. Tenho que confessar que até aquele instante não estava muito convencido de que aquela manhã seria interessante. Apesar da insistência de minha mãe de que eu certamente me apaixonaria, deixei-me levar mais com o intuito de agradá-la. Em casa ouvíamos sempre música, embora meus pais tivessem um gosto bastante diferente da ala progressista e entendida do assunto representada por mim e pela minha irmã mais nova. Do lado mais conservador escutava-se LPs, alguns ainda em 78 rpm, com árias veristas, sinfonias, concertos. Na rádio, apenas emissoras adultas da Cultura e Eldorado. Para nós, vanguardistas, muita guitarra, cantores exóticos e sinistros, altos decibéis enfim. Mas até que suportávamos com uma resistência débil inicial ouvir “música séria”. Até gostávamos de algumas que pedíamos aos nossos pais como em programas de rádio. Mas nunca tinha assistido a um concerto...

Na minha manhã de estréia tinha deixado em casa minha irmã emburrada e contrariada com o meu paciente pai. Ela teria a sua chance algum tempo depois. Meu pai em sua difícil missão a levaria para o clube com o objetivo único de aplacar o incontrolável ciúme.

Entreguei os dois bilhetes com muito orgulho e lá estávamos dentro daquele impressionante local. Simplesmente magnífico! Escadaria e piso de mármore, tapetes vermelhos, pesadas cortinas de veludo, obras de arte distribuídas em um amplo espaço, enormes lustres desafiando a gravidade, bustos, cristais, vitrais multicoloridos e mosaicos. Algo deslumbrante que me lembrava apenas de ter visto em filmes antigos com reis e rainhas. Mas o melhor ainda estava por acontecer. Ao entrar na grandiosa sala não pude me conter. O meu coração acelerou de tal maneira ao vislumbrar da entrada do balcão nobre o palco iluminado com as cadeiras enfileiradas e um grande órgão tubular na lateral. Após sermos conduzidos aos nossos lugares por uma senhora simpática e sorridente pude apreciar melhor o local. Minha mãe percebendo o efeito causado começou a me contar histórias do teatro, sobre a distribuição dos assentos, a ler o programa que havíamos recebido na entrada, a explicar a disposição dos músicos. Coisas que ouvia com toda a atenção e interesse.

Tudo se passou muito rapidamente. Os assentos foram quase que completamente tomados. A seqüência de campainhas, a luz perdendo o seu brilho, a entrada humilde do coro e da orquestra. Aplausos. A afinação dos instrumentos. E por fim, a figura mágica do maestro. Mais aplausos. Naturalmente não conseguia identificar a enorme variedade de instrumentos naquela orquestra. Alguns com formatos esquisitos, outros conhecidos. Tentava encontrar uma relação entre o formato dos instrumentos e o corpo dos músicos. Nada encontrei para a minha decepção. Outra coisa que me passou pela cabeça é se haveria algum tipo de hierarquia entre os diversos grupos de instrumentistas. Nada aparente, apenas o regente como o “manda-chuva”, único e poderoso.

Uma rápida tensão no ar prenunciando o início do programa. O regente com a sua batuta enfeitiçada, porte arrogante. Os músicos em posição com o olhar fixo no seu guia. A platéia sem respirar.

Os primeiros acordes dos violinos e violoncelos num crescente anunciando o ápice sinfônico de um surdo com os cabelos revoltos, roupas desalinhadas e feições severas. A imagem de Beethoven que ilustrava a capa do folheto: Sinfonia No.9 em Ré Menor. Estava completamente arrepiado com a força invisível da música colossal que tomava o meu ser. Aquilo que sentia naquele momento, naquela intensidade, só poderia ser descrita como sublime. Não conseguia encontrar qualquer outra palavra de meu minguado vocabulário a que pudesse associar ao estado de sentimentos em que me encontrava envolto. Tinha apenas a noção de que esta manhã teria um profundo significado na minha vida. Com a minha total anuência esta música, com seu manto liquefeito metálico, encobria toda a superfície do meu corpo que em contato refrescante me arrepiava inexplicavelmente. De quando em quando olhava para minha mãe que correspondia com um sorriso.

Viajei. Talvez tenha sido a minha primeira viagem místico-sensorial sem uso de álcool ou drogas alucinógenas, psicodélicas, tão propagadas na década de 60. Cores, formas, volumes amorfos em constante transformação atiçados por aromas exóticos de diversas intensidades. A água envolvendo completamente os objetos, transparentemente puxando-os para baixo, para mais baixo, em uma dança improvisada. A luz penetrando na água com variações de cor, aconchegando as formas, acalentando-as com seu morno abraço. Surgiam, sonoramente, violas, violoncelos, fagotes e oboés. Mais adiante a flauta prateada afugentando os tímpanos. A batuta, viva e tenaz, movimentando-se, indômita, despertando, harmonizando os diversos timbres, entrecortando-os com pausas premeditadas, seguindo uma trama genial e surpreendente. Com certeza o que sentia ao passar pelos movimentos desta sinfonia se encaixava perfeitamente nas descrições que posteriormente li sobre dependentes químicos em sua primeira viagem. A primeira Valisère...

Nesta viagem, em seu terceiro movimento, apesar de minha pouca idade, alguns lampejos da criatividade humana, de suas notáveis realizações, a concretização da palavra “genialidade”, a primeira página de um livro grandioso da história da humanidade, a fortuna do desfrute dos sentidos. A descoberta e o encantamento do adágio, sentimento de dor contemplativa exteriorizada por trompas, fagotes e clarinetas, que respondem periodicamente em eco. As fluidas sinuosidades das cordas. O adágio desaparecendo, pouco a pouco.

O quarto movimento: um choque. De alta voltagem. Daqueles em que quase se perde os sentidos e você percebe os fios de cabelos se levantarem sob um comando invisível e poderoso. A voz humana! É como se estivesse ouvindo pela primeira vez. E que todas as canções ouvidas, barulhentas como exprimia meu pai, e os ruídos desagradáveis emitidos por pessoas em suas conversas diárias pertencessem a uma trilha sonora defeituosa de um filme classe B. E ainda reproduzidos por vitrolas descalibradas e mal humoradas. O apogeu esplêndido de uma obra única: Ode à Alegria. Não poderia ser mais feliz o título deste acontecimento. Embora não compreendesse alemão, “entendia” o que Schiller escrevera, graças à tradução inequívoca da música de Beethoven. Ao olhar os arcos do teatro repletos de ouvintes atentos, percebi que todos estavam sintonizados na mesma freqüência de recepção e emissão, vibrando na mesma cor e conectados pelas mesmas sensações; imaterial.

Final: êxtase. Aplausos frenéticos de uma platéia desvairada. Estou enlouquecido...

Não quero ir embora. Com a minha mãe tento ao máximo prolongar as sensações, agora, definitivamente parte da minha pessoa. Vou conhecer os salões do teatro, seus lavatórios, os terraços externos, a platéia, os camarotes, o foyer, a alta galeria.

À saída, com certa tristeza, vejo o movimento das pessoas dispersando-se em busca de alimento. O mundo real. Então minha mãe me convida para tomar um chocolate quente próximo ao Mappin: Leiteria Paulista. Cinco minutos de uma indolente caminhada e estávamos entrando e, para a minha surpresa, o local estava com o balcão tomado por pessoas em ternos negros, gravatas comportadas, conversando animadamente. Não acreditava: eram os músicos da orquestra, que carregando os estojos com seus instrumentos descontraíam-se bebendo um café e trocando impressões sobre o concerto. Parecia mais um ritual deste mundo recém descoberto.

A princípio, meio acanhado e tímido, bebo o meu chocolate, atento às conversas, calado e concentrado. Minha mãe apenas observa. Começo então, meio gaguejante, a perguntar ao músico mais próximo o nome do seu instrumento: clarineta. Ele percebe a minha enorme curiosidade e começa, de forma afável e simpática, a me apresentar os instrumentos de sopro, suas diferenças, maneiras de tocar e, sua importância dentro de uma orquestra. Pergunto então porque decidira ser músico erudito e não montar uma banda de rock ou MPB. Outro colega mais jovem, violinista, faz quase que um discurso, apaixonado, sobre as sinfonias de Beethoven, que descubro serem nove! Um terceiro me fala sobre os ensaios e os estudos intensivos para a apresentação de uma peça musical. Minha primeira aula musical; inesquecível!

No trajeto de volta não paro um instante de falar, na tentativa mal sucedida de exteriorizar o meu contentamento, a minha descoberta. Tudo parecia diferente, realmente. Era como se vislumbrasse um novo talento, uma qualidade única em que eu poderia me desenvolver. Como o primeiro contato com o mar; as ondas, o aroma salino, o horizonte longínquo, a visão dos próprios pés em uma dimensão desconhecida, a vontade de se transformar em uma criatura aquática para poder explorar os mistérios do mar. O ilimitado. Procurei no rádio a emissora predileta de minha mãe. Queria ouvir tudo, saber tudo, aprender tudo. Estava completamente seduzido; alucinado. A barragem tinha se rompido.

Sentado nas escadarias do teatro, de frente a Casas Bahia, aberta e movimentada, relembro de forma nítida e seqüencial, como em uma história em quadrinhos, dos movimentos seguintes àquela abertura musical. A descoberta dos discos dos meus pais. O ritual sagrado da audição desvendando a linguagem sonora, tão rica e de difícil tradução para o verbo. A compra dos primeiros discos, a leitura de revistas especializadas, o conservatório. Poucos amigos apaixonados. Uma namorada, um drive-in, e as partitas para violino solo de um tal Bastião. Um aprendizado infindável, um prazer sempre renovado pela releitura de uma peça conhecida por intérpretes geniais. As salas de concerto. O Theatro Municipal.

Agradecido à minha mãe entrego o bilhete, recebo o programa e me deixo levar em direção ao sublime pelo mesmo Beethoven, de eternas feições severas, lenço vermelho, revoltado contra a surdez do seu destino, com seus cabelos desalinhados, trajado de forma desleixada. Fecho os olhos sentado na cadeira de veludo; sereno. Estou pronto para mais uma viagem. Acionar!