Segunda-feira, dia 10.
Segunda-feira, dia 10.
Combinação inquietante, velho dito popular em um novo ano que apenas se inicia.
Resultado da ineficiência dos amarelinhos não recebi em tempo o boleto de pagamento de uma das inúmeras contas que afloram espontaneamente no escaninho do meu velho apartamento.
Ratifico: não recebi dos amarelinhos o boleto para pagamento no dia 10, segunda-feira.
Prontamente, seguindo o instinto-primeiro de minha ingenuidade, acesso o site da emissora do boleto com a esperança de impressão de uma 2a. via.
Resultado negro: não disponível.
Apelo então para o 0800, destacado em azul-escuro sobre fundo amarelo, para informações, desejoso de obter ao menos um fax da 2a. via ou a concessão de um boleto com nova data de vencimento.
A robótica atendente, processador de 3 bits, com a conhecida tonalidade de voz laranja-ocre irritante, informa o único procedimento existente para o indesejável Cliente que quer pagar: dirigir-se ainda hoje a uma agência, de cor também amarela, e responsável pela gestão de recebimentos, para que possa ser emitida a 2a. via. Acrescenta ainda, que devo ir pessoalmente com os dados cadastrais e, se possível, enfatiza, com o boleto do mês passado. Apenas para facilitar... emenda.
Respiro fundo resignado.
Preparo-me para a missão como um coadjuvante de Tom Cruise. Sigo contrariado em meu carro para a agência mais próxima.
Ao tentar entrar na agência sou barrado pelo complexo metálico-vítreo e concluo que não sou bem-vindo. Possivelmente, fora descoberto em minha missão em tempos terroristas. Sou obrigado a dispor de meus objetos incomuns de agente condenado: celular, chaves, canetas. Sou enfim aprovado pelo Sr. Detector de Metais e pelo ameaçador vigilante de azul.
Subo as escadas e entre inúmeros cartazes amarelos de propaganda de produtos e serviços da agência retiro uma senha branca com número negro que indica a minha posição: 253.
Sento-me na única cadeira disponível entre tantas outras ocupadas por pessoas infelizes de diversas cores e um único mal-humor. Aguardo tentando me distrair, lendo folhetos ilustrados com pessoas bonitas e satisfeitas propagando eficiência, rapidez e simpatia. Levanto os meus olhos e confiro os detalhes da mensagem ao meu redor. São quatro mesas de atendimento que, com o passar do tempo, percebi serem apenas duas em operação funcional. Duas mulheres. Uma magra, outra fofa. Uma loira, outra oriental. Ambas concentradas. Pergunto-me: ar-condicionado ?
Trinta e três minutos depois sou atendido pela loira magra que me recebe com falso sorriso de dentes irregulares. Explico a ela o triste enredo em que sou protagonista. Seu sorriso permanece pendurado. Após inúmeras consultas entre telas e telas que desfilam no terminal mágico em sua mesa, diagnostica: é possível sim a emissão de 2a. via. E o meu procedimento fora totalmente correto, acrescenta. Sou agraciado com o novo boleto impresso em branco e preto acompanhado de um sorriso renovado. Pergunto então se posso pagá-lo pela internet. O sorriso se desmancha e é substituído por um conflito entre dois neurônios que a leva quase ao desmaio. Recompõe-se após o consenso micro-cerebral e se dirige às duas mesas restantes ocupadas por dois homens. Dois engravatados sérios. Dois japoneses pouco amistosos provenientes de velhos seriados desbotados. O mesmo corte de cabelo, mesma estatura, ambos de uma mesma linha de produção. Ocupadíssimos. Um deles então interrompe suas tarefas, de notada importância, e com ar enfadonho murmura uma negativa. De volta ao seu posto a atendente repassa a negativa. Pergunto então se posso pagar em outro banco de diferente cor, vermelho talvez. Os dois neurônios se congratulam felizes: naturalmente que não ! Insisto desesperançado se posso pagar com cheque... Um dos neurônios, o mais sádico, feliz, então adverte: apenas em dinheiro !
Como a realidade pode ser negra em um mundo amarelo-ouro...
Abro a minha magra carteira e confirmo não ter a quantia necessária. Resignado deixo a agência do Buraco do Brasil e alcanço as ruas da Liberdade ! Contando de três em três rumo à minha agência azul-laranja para sacar o dinheiro necessário. Antes fosse verde-real. Retorno à agência amarela, tomo a benção do Sr. Detector e me coloco na última posição de uma fila única e interminável para o pagamento. Não sei ao certo o motivo das imagens de abatedouro no formato de filmes da década de 40 que desfilam em minha mente. Fila única com diversas corcovas que desembocam em quatro caixas, três operacionais, uma com estagiária. Para ser franco não é única fila existente. Um acesso lateral para deficientes, grávidas e portadores de RG muito antigo.
Vejo como estou despreparado para a missão. Observo uma adolescente alienada a tudo, com seu fone de ouvido, dançando três posições à frente. Não tenho a companhia de Alejandra e Martín e de sua trama portenha, nem das notícias destemperadas de meu amigo metalúrgico em nosso melodrama nacional. Assim, tudo observo. Ao meu lado, em uma circunvolução futura, um senhor engravatado e transpirando lê a bíblia. Adivinho que esteja lendo sobre Jó ou como as muralhas de Jericó foram derrubadas. Muito sério e compenetrado. Parece ter lido desde a gênese neste espaço amarelo. Ora. Treze minutos depois e a fila não avança, encomprida. Ouço reclamações de toda sorte: do tratamento que nos é dispensado, da insuficiência de atendentes, do calor, das injustiças sociais, das diferenças nipo-brasileiras e é claro, do timão. Os caixas parecem tudo a assistir e numa satisfação íntima mal contida compartilham este espaço sadicamente, microcosmo de um país azul anil.
O tempo passa e o calor aumenta. Assim como a fila.
Um rapaz fala nervosamente ao celular. Informa ao seu supervisor que não será possível ir a outros lugares, pois no mínimo encontram-se vinte pessoas em posição de vantagem na fila. Exagera dizendo que não é possível enxergar os caixas. Dramatiza a situação. E ao se dar conta de minha intrusão me dá uma piscadela cúmplice.
Alguns desistem. Outros tentam furar a fila. Tudo parece passar em câmera lenta e embaçada. No filme em branco e preto: alienação, fé religiosa, enganação.
Noventa e três minutos depois uma leve palpitação me invade. Sou o número 1 ! Sou chamado pelo caixa 3? Um senhor gordo, muito gordo, grandes orelhas, olhos miúdos atrás de lentes enormes e quadradas. Sua em profusão e tem aparência pouco esperta. Terei problemas penso profeticamente. Entrego o boleto emitido. Ele tenta ler. Afasta e aproxima o papel de suas lentes grossas e sujas. Apoio minha cabeça nas mãos e olho para baixo a fim de evitar esta triste cena. Olha para o terminal por sobre os óculos, faz uma careta infantil e começa a digitar com os seus dedos gordos no teclado numérico. Imprime, registra, reimprime. Pausa. Processa. Nova pausa. Evita o meu olhar severo. Sente a solidão de um único neurônio. Mira o teto e a seguir os seus companheiros de infortúnio. Levanta-se. Pede orientação à japonesa sênior do caixa 1. Senta-se. Relê. Ativa o seu neurônio. Desiste. Aguarda. A japonesa sênior com uma enorme má vontade concede uma passada de seu cartão sênior amarelo. O gordo atendente sorri. Recomeça o processo. Anula o impresso. Rasura com sua caneta azul o registro no boleto. Calor mais suor. Imprime, registra, reimprime. Fim do processo. Recebo o canhoto e penso em agradecer. Só penso. Olho com pesar o tamanho da fila inalterada.
Três horas depois, me dou conta do custo Brasil azul canil. Tomo as ruas da Liberdade vermelha e branca. Três horas desperdiçadas de minha curta existência. Não sei se entendi bem. Três horas.
Ao voltar para casa encontro no meu escaninho o boleto que os amarelinhos me deixaram de presente.
A noite é negra.
[11.I.2K5 - neuras]
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