sexta-feira, janeiro 14, 2005

Notícias do Jornal

Acordo cedo. Sem música. Um sol alegre e radiante me espera.
No caminho para o metrô uma rápida troca de palavras com a jornaleira quarentona de olhos verdes.
Uma olhadela incontida no prêmio da mega-sena anunciado em cartaz da esquina. O número escrito na tabuleta, esperança renovada, que quando pequeno causa inveja do ganhador anterior e, quando acumulado, provoca uma ilusão desproporcional, fuga fácil de nossas vidas medíocres.

Determinado, sigo meu caminho. Observo as pessoas que, assim como eu, iniciam a sua jornada de trabalho ou de outras obrigações tipicamente paulistanas: feira, supermercado, shopping, igreja, coisas divertidas assim.

Embora seja sábado, dia tão esperado e proclamado pelo brasileiro, somente as crianças com quem cruzo escancaram um sorriso. No metrô uma fila enorme e sombria chama a minha atenção. Penso treinado: aumento de passagem, será? No interior sufocante e monótono do trem pessoas mudas e inexpressivas trocam olhares sem se ver. No meio deste marasmo uma morena deslumbrante de peitos fartos, sincronicamente balouçantes, cabelos curtos, longas pernas. Com jeito safado me observa. Enormes olhos de predadora: T'Pol. Um forte calor me invade e me acende. Sintoma de que meus devaneios estão de volta...

Para a minha salvação ou contínua desgraça o trem pára na minha estação destino.
Ao sair ainda olho esperançoso para a senhora triste de rosto murcho e cansado.
Encontro-me então em um local, velho conhecido meu, que não deixa ainda de me impressionar, produto arquitetônico simbionte, templo de orações conflitantes de poder e negação.

Durante toda a manhã cumpro com as minhas obrigações religiosas prestando homenagens insinceras através do culto semanal às cinco estrelas de um firmamento de concreto. Estrelas próximas e alinhadas. Falsas.

Corte rápido. Estou em casa. Ocupando os espaços de forma vigorosa o movimento inicial da 1a. de Mahler. Sentado confortavelmente em meu trono monástico (da sala !) leio as notícias do tablóide.
Coincidência, ou não, a primeira reportagem que chama os meus olhos descreve o sucesso da chegada da sonda Huygens ao solo da Titã. Outra estrela, não, uma lua. Desta vez, desalinhada e distante - real e misteriosa.

Alterna-se o canto do cuco aos apelos das trompas. Emoção.

Num ambiente inóspito, com cerca de 200 graus negativos de temperatura, e quase sete anos após o seu lançamento, um pouso exitoso. A excitação de uma realização sem precedentes e o orgulho de ser humano.
Devoro com entusiasmo as diversas colunas de letras miúdas.
Levanto minha sobrancelha e saúdo como um vulcano: fascinante!

Animado com a notícia viro a página. A emoção prontamente é substituída pela angústia.
O terceiro movimento se inicia, grave, em tom menor - tom macabro.
Das proximidades de Saturno sou atirado ao clima quente do Oriente Médio. O arrogante Sharon não quer brincar mais com Abbas e bloqueia a Faixa de Gaza. As acusações de sempre transferidas de um Arafat "desaparecido" para um Abbas recém-eleito. Com a cabeça progressista no espaço explorando literalmente novos mundos e a incapacidade de ocuparmos os nossos espaços nativos, minados continuamente pela desconfiança, insensatez e violência. A marcha fúnebre se faz ouvida como se invocasse a presença dos Jedis.

Pela janela aberta o sol insiste em sua fé.

O início do 4o. movimento, dramático, e apontando os caminhos do inferno, parece dialogar com o rosto atormentado de Charles enfrentando os protestos da opinião pública na página ao lado. Explico: o mais novo bobo da corte inglês, o incipiente príncipe, Harry, não o divertido Potter, filho do insípido herdeiro britânico, aparece em foto publicada usando uniforme nazista com suástica e tudo. Um primor de inteligência e de sintonia com a história recente. Por muito pouco não apareceu com o uniforme negro da SS, fazendo uma dobradinha de mal gosto com Himmler em uma balada noturna. A revolta de muitos superando o deleite de poucos.
Mas o final glorioso da sinfonia parece absolver o pequeno príncipe, já que este parece ter herdado o talento para gafes do avô Philip. Dentre inúmeros constrangimentos reais o jornal cita "a visita do avô à Escócia, onde perguntou ao instrutor de uma auto-escola como ele mantinha os alunos sóbrios o tempo suficiente para que passassem no exame de direção, ou ainda, em outra visita, desta feita à Austrália, onde perguntou a um aborígene se eles ainda atiravam lanças uns nos outros". Como se vê, e discordando da recomendação de Charles de enviar o seu filho à Auschwitz, a família real inteira poderia ser assentada na lua Titã. Devidamente acompanhado de Sharon!

Continuo passeando pelas folhas soltas do jornal e as piadas grosseiras e mal contadas continuam se insinuando à minha paciência. Como num filme, a câmera brinca com imagens longínquas percorrendo o trajeto da nave Cassini. Imagens rolando e freqüentemente congeladas, sob o comando de um diretor anônimo, passando por Vênus, Júpiter..... agora os anéis de Saturno, sua lua maior. A seguir, o planeta azul, fechando em Israel e na Faixa de Gaza, em cortes rápidos, alternando com depoimentos de civis palestinos e israelenses. Atentados radicais. Imagens se desvanecendo. Surge uma suástica tremulando emoldurada por uma Londres embaçada. Londres está sempre embaçada na minha cabeça. Foco os símbolos britânicos, amplio a imagem de Charles ao lado de Blair. Comentários em inglês. Noticiários da BBC. Tablóides sensacionalistas. Distorção sonora. Baixa a rotação. Vozes arrastadas com num fonógrafo descalibrado de um filme psicótico.
Momentos depois a rotação vai se normalizando..... lentamente.....

As palavras audíveis agora estão em português. A câmera mostra o centro de poder verde-amarelo com o congresso, palácios e ministérios. Chego à seção de notícias nacionais. Leio e mais uma vez sou tomado pela incredulidade.
Silêncio no ar. Indefinição para a trilha sonora a escolher: samba ou axé? Marchinhas carnavalescas, talvez...

Novamente o ridículo: o Itamaraty retirou da prova de inglês o caráter obrigatório como forma de expurgar o elitismo da carreira diplomática. Depois da retirada do francês, agora o inglês. Amanhã, o português. É o pensamento minimalista de um metalúrgico deslumbrado: fome "zero", diplomacia muda! O silêncio no escuro.

Esta é a mentalidade reinante em um país que potencializa a desqualificação, admira a falta de escolaridade de seu presidente, e se congratula com uma falsa e populista liderança regional. É a deformação representativa de um estado mental atrofiado do Palácio do Planalto, sustentado por uma arrogância infantil e descabida.
Agora sim encontrei o contraponto ao progresso espacial. O titã Amorim.
Mais uma vez a pactuação com o nivelamento por baixo resultante de tradição da péssima qualidade de nossa educação básica. O governo, dito inovador e progressista, além de não viabilizar um projeto educacional de acesso democrático, decente e de qualidade, se supera com a "popularização" do Itamaraty.
A mediocridade e a ignorância despontando com orgulho, como alternativa ao mundo globalizado, através da dispensa de sua língua franca, instrumento da diplomacia internacional. É burro. É inaceitável. É Brasil.

Som na caixa: Assim falava Zaratustra - Dos habitantes dos mundos ocultos, com a participação especial de Casoy e sua figura angulosa, congelando a sua mais famosa interjeição.

Percebo a dificuldade crescente no simples ato de ler um jornal.
O desgaste emocional: excitação e entusiasmo no espaço infinito. Revolta, impotência e desânimo no Oriente Médio. Perplexidade na Europa. Indignação e vergonha no Brasil.

Numa última olhada, ao fechar o jornal, descubro em um canto de página:
"Metrô e trem ficam mais caros amanhã."

[17.I.2005 - neuras]