Cena da Manhã
Não soube ao certo quando se deu conta. Por acaso, com certeza. Neste seu desligamento contínuo e lunar foi, sem dúvida, um evento perturbador. Dentre inúmeras coisas que fazemos no dia-a-dia de forma automática e inconsciente. Maquinalmente. E em geral com descaso.
Certamente, num desses dias iguais, resultado talvez de um relance mais agudo, uma incidência de luz exata, a atenção desviada para um som casual, um pássaro, sei lá... Razão: desconhecida.
- Não tem registro ! Não tem registro ! Repete indefinidamente B9 frente a um Will desconcertado e um Mr. Smith inquieto e desconfiado.
E lá está ele, em frente ao espelho de seu minúsculo banheiro centenário; embaçado; por dentro e por fora, com os vapores remanescentes de um banho escaldante e rápido. Banho, no seu caso, indispensável para o choque necessário de vida após o noturno abandono em outra dimensão.
Mas, diferentemente dos outros dias, onde mal se olha para a tortura diária de cortar pelos teimosos e renovar o seu hálito já moribundo, presta atenção à sua figura; foca primeiramente em seu rosto. Como numa grande tela de cinema. Ou mesmo como nos outdoors eletrônicos de uma Tokyo que vemos nos documentários de um mundo sem sentido. Aproxima os olhos deste tão velho conhecido seu; o mais íntimo de todos, aquele o qual julgamos compreender em seus pequenos detalhes. Face esta com a qual travamos monólogos condescendentes, repletos de elogios à uma estética, no mínimo, suspeita. Somos mais judiciosos, apenas, do que as nossas queridas mães. Estas nos vêem sempre com descabida razão. Do afeto.
Exclama sem qualquer alteração de seus lábios:
- Estou envelhecido. Velho, não ! Mal tratado, talvez...
Diria sua mãe: maduro.
- Como são doces as nossas mães !
Nota alterações significativas na geografia de seu rosto, marcas de alegrias, decepções, anseios e desilusões. Vira o rosto de lado, identifica rugas antes inexistentes, aprofundadas por caretas duras, percebe linhas, sem a graça e leveza de desenhos renascentistas, em uma pele não somente sulcada, mas manchada e irregular. Como em encostas castigadas pela erosão e chuvas freqüentes vê as faces, antes rosadas e esticadas, agora flácidas acabando em barrancos laterais de pele. A elasticidade e a sustentação estrutural do rosto altivo de outrora não mais existe. No geral uma imagem trabalhada e retrabalhada de um artista indeciso e às vezes inábil, deixando à vista as tentativas mal sucedidas, as intenções bisonhas e ingênuas, de camadas e camadas de um serviço ainda inacabado. Como no retrato feito por Basil Hallward o reflexo das transformações de uma meia-vida marcadas por entalhes, resultados de ações e inações, conflitos, confrontos, gozos amorosos, confusões da alma. Duas grandes entradas se fazem notar nas têmporas recobertas por um cabelo ainda espesso, ao longe acinzentado, mas na distância em que se encontra do espelho delator, brancos fios começam a derrotar os negros nesta batalha onde são conhecidos os vencedores.
Está desconcertado. Ainda que óbvia, a passagem do tempo o surpreende no seu curso inexorável: lento e constante. Igual para todos. Lembra-se então, com indisfarçada satisfação e maldade, as marcas do tempo reveladas em Davos sobre a sua adorada Sharon Stone, autora da mais fantástica descruzada de pernas da história do cinema, ou mesmo na sua enigmática Isabella Rossellini cantando Blue Velvet apenas para ele, de forma íntima e cúmplice. Não se sente vingado. Percebe a decadência mais vivamente como parte do aclamado ciclo de vida parte de uma experiência recém-descoberta. Indignação? Um certo medo da brevidade da vida? Inconformismo? Talvez...
Neste instante vê nitidamente, uma vez mais, o descontrolado robô alertando para o perigo. Entretanto, o registro existe. Existe em inúmeras formas da expressão humana: livros, pinturas, músicas. Todas exteriorizando pensamentos e sentimentos sobre o nascimento, ascensão, declínio e morte. Tudo em formato básico de história. História geral, narração contínua dos acertos, tropeços, momentos de beleza sublime contrapondo-se a tragédias que exacerbam a estupidez humana. Mas as coisas parecem mais velhas e complicadas quando do geral, através de uma lupa sem filtros, passamos para o particular, o pessoal, a sua história. Por mais curta que seja, quando comparada à grande história, não é menos traumática e rica.
Com as duas mãos estendidas sobre a pequena pia molhada, toalha enrolada na cintura, aproxima uma vez mais o seu rosto de espelho com trincas.
Quando damos conta de nossa história, um evento marcante de sentimentos contraditórios, de maneira óbvia percebemos que neste túnel temporal e infinito todos os participantes caminham na mesma direção e no mesmo passo. É como se fôssemos conduzidos por uma esteira rolante de velocidade constante onde os seus usuários iniciam o seu passeio ao receber a vida e abandonam o túnel ao desencarnar. Em qualquer instante podemos observar as outras pessoas, familiares ou não, amadurecendo e envelhecendo como os personagens de massinha de modelar de animações que assistimos na TV Educativa.
Desta forma, há alguns passos de distância nesta longa esteira, percebe no espelho as grandes mulheres de suas fantasias não realizadas: Marianne Faithful, Kim Basinger, Laura Dern, Uma Thurman... em novos formatos, adaptadas ao tempo e ajeitadas por hábeis bisturis. Reconhece também a garota-Sukita, sintomático: ‘tio, aperta o 20’. Alguns bons metros adiante identifica Mick Jagger, ainda na versão rebolante, cantando a plenos pulmões "(I can't get no) Satisfaction", ao seu lado está Al Pacino roubando um banco do Brooklyn para a cirurgia do seu amante Leon, Harrison Ford também está lá perguntando pelas tranças da princesa Léia Organa.... Muito atrás de si vê e se delicia com a gostosa Britney Spears ecoando também "I can't get no satisfaction" em uma codificação não decifrável... Sorri, e com certo sarcasmo, começa a se divertir neste túnel intenso.
A esteira está lotada. Mas, inexplicavelmente, o ar é leve e fresco. Ainda assustado com a quantidade de pessoas desvia o seu olhar para as paredes que vão deslizando à sua esquerda. Distingue então grandes painéis que vão tomando forma à medida que se concentra. São imagens de sua vida. Nítidas, porém muito rápidas. Tão rápidas que apenas identifica muitas cenas entre as incontáveis que despertam sentimentos esquecidos ou represados. Infância difícil, mas feliz. Sorrisos e exclamações de uma família unida e lutadora. Adolescência rebelde e solitária, como todas, pouco originais, incompreendidas. O gostar, o primeiro trepar, amar é.... Um, dois casamentos fracassados. A filha que o rejeita. Simplesmente fascinante ! Como que drogado pareceu rever em poucos instantes, acompanhado de uma platéia não convidada, os piores e melhores momentos de sua existência. Uma sensação de "quero mais" substituiu a névoa de vapor de um chuveiro há pouco desligado. A sensação de calor permanece.
Encerra, de forma brusca, a visão deste caleidoscópio temporal e surpreendente, lavando o seu rosto com a água fria, violenta, evitando a face severa, que agora reconhece como sua. Com uma velha toalha felpuda e esgarçada enxuga o reflexo de sua imagem com as duas mãos, apressado.
Roupas ao acaso, lentes de contato, perfume, um café fresco e atordoante, botas sujas. Olha, distraidamente, uma velha foto em um porta-retrato fora de moda, registro de uma pequena biografia. Desce as escadas para o trabalho. Amargo.
As imagens perturbadoras ainda vivas se confundem com o cinza da manhã.
Ao atravessar a rua uma brusca freada. Um sobressalto. Dor. Escuridão e alívio.
[neuras - 06.IV.2K5]
1 Comments:
Acho interessante seus escritos....
não consigo parar de pensar em muitas semelhanças no conteudo dos posts,ma da vontade rir muito porque tenho uma natureza voltada pra ser detetive e gargalhadas seguem com minhas ideias...Acho que gostaria de conhecer você mas ja penso que ja conheço você pela escrita e este post e os outros me fazem risos interiores sem parar (hehehehe)como se estivessemos em um jogo sim é isso um jogooooooo de escritas e reações as escritas...vou postar kim com gelo na barriga (hahahaha) e você por favor devera ir la prestigiar o post use outro pseudo se quizer mas use de forma que vou sempre reconhecer você como tenho penssado ter lhe reconhecido...
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