Abismo 32?
Olho pela janela de meu castigado escritório e noto primeiramente que a vidraça necessita de cuidados. A imagem de verdes árvores acinzentadas é entrecortada pelas rachaduras há muito causadas por um pedregulho mal intencionado, um projétil sem destino, perdido. Por mórbida curiosidade desvio os meus olhos por breves instantes para o assoalho em sua imitação barata de um mosaico bizantino e encardido. Procuro pelo agente da trinca vítrea que a cada dia parece pedir afonicamente pelo seu desaparecimento. Não encontro nem ao menos um único vestígio do motivo desta ação em minha imaginação. Enquanto isso, a trinca retoma o seu protesto aumentando milimetricamente a sua extensão em formato de teia cada vez mais ameaçadora e sinistra. Talvez por esta razão sua transparência venha se tornando gradativamente mais embaçada, já que uma limpeza descuidada seria responsável pela sua total desfiguração. A moldura branca da janela e as grades externas de proteção dão o tom exato de minha exclusão; falsa proteção, de um mundo selvagem e aterrorizador. À frente da janela, próxima a minha mesa, tento inconscientemente reproduzir a beleza da natureza por meio de vasos de plantas anãs e solitárias que me acompanham na ânsia de compartilhar o ar externo convidativo e falsamente libertário. Nada escuto proveniente desta realidade próxima e ao mesmo tempo distante. Dos meus fones de ouvidos negros apenas White Stripes, que me isolam acusticamente dos ruídos de carros que passam buzinando, de bocas gritantes e inconseqüentes, de doces trinados de amigos emplumados, dos anúncios de pamonhas piracicabanas. Apenas a guitarra levemente paranóica de Jack e a voz adolescente, quase infantil, de Meg. A exclusão doce de um mundinho medíocre e anestésico. Levo à boca minha xícara plebéia de café forte e quente que imediatamente me conforta neste dia invernal.
Interferência externa. Suspiro profundo e amargo.
Tento disfarçar a angústia imediata em que sou afogado. Impotente. Quero, uma vez mais, refugiar-me na ponte japonesa ensolarada e primaveril de onde tenho uma visão privilegiada de ninféias numa composição meticulosa e intencional. Concentro-me. Do jardim multicolorido circundando este lago de nenúfares, que se confundem com a imagem de nuvens refletidas na água, desprende uma aroma inebriante. Ao meu lado identifico o jardineiro, com suas roupas simples, contemplando pensativo a sua obra. Um velhinho de longas barbas brancas, chapéu de palha, cigarro no canto da boca. Muito me lembra um Monet de velhas fotos desbotadas. Com seus olhos miúdos e generosos de Gepetto sorri esperançoso. Silenciosamente me convida a contemplar o seu jardim de intenso contraste cromático, vibrante, sem linhas demarcatórias, com sombras luminosas onde a mistura óptica das cores é contínua e desconcertante. Andamos lado a lado por alguns minutos ouvindo o óbvio Debussy.
Com a alma mais leve enfrento a realidade alvinegra do e-mail aberto na tela de meu PC. A obra do velho jardineiro se transfigura em uma imagem estática pendurada na parede. Releio então a mensagem fria e sem odor da morte de um colega. Não é de um amigo, próximo ou distante, mas de um colega com quem cruzei na execução de alguns projetos sem importância. Talvez. Seu nome, como o do jardineiro de Giverny, como o do compositor francês de Prelúdios, Cláudio. Poderia ser João, Macabéa ou Arleide. O que importa? Um nome? Sua pessoalidade. Com identidade, caráter, família, relações, realizações e história. Desligaram definitivamente a sua conexão de vida, diz o e-mail, de forma violenta e bárbara. Sem sentido algum. Assassinado, defensor impensado de seu carro, símbolo menor de conquistas de um mundo competitivo e globalizado aprendido em terras estrangeiras. Vítima de uma lista interminável e aceleradamente crescente de um Brasil estúpido e desigual. Onde se registra, de forma contundente e surreal, a diferença entre os 40% da população mais rica e os 10% da de menor renda ser de assustadoramente 32 vezes ! Números e cifras intermináveis aprofundam o abismo 32 tentando explicar causas, evoluções, agravantes que espelham este resultado vergonhoso. Resultado talvez de uma característica fundamental desta brasilidade contagiante: para se dar bem, ganhar, vencer, é necessário tirar, extrair, explorar, roubar. A lei de vantagem desabrochada em todas as cores e aromas, sabor nacional suportado pela condescendência cultural. O comportamento de um povo trai a sua mentalidade. Cabeça minúscula de um corpo valente e exibido. Valente para enganar. Valente para roubar. Valente para matar.
Magnificamente equipados os agentes do bem entram em ação com palavras de ordem estridentes. A condição de penúria de um povo ! Justifica um, enquanto atira cascas de laranjas pela janela do seu carro importado. Pobreza e fome ! Complementa outro, depois de mexer com uma jovem morena escorada em um ponto de ônibus qualquer. Sua filha, será? Saúde "zero", esclarece ainda outra, escorregando furtivamente alguns brincos para a sua bolsa. Educação? Indaga o nobre político, cínico, com seu bolso estufado de favores. Direitos Humanos... Murmura um adolescente “crackeado” exibindo o seu "berro" na cintura. Injustiça social ! Esbraveja do palanque o presidente de Garanhuns. Aplauso geral.
Estatísticas desumanas, ainda que reais e injustas, não justificam ao meu cérebro atrofiado o tamanho da violência cada vez mais próxima, constante e dolorosa. A ausência de conceitos básicos humanos: certo. Errado!
Impunidade. A vantagem. Tirar a qualquer custo. Vida gratuita e descartável. Abismo 32?
Em um país onde retratos de biografias precocemente abreviadas ocupam cada vez mais espaço nos meios de divulgação, o medo e a revolta, ao lado do cansaço crônico de uma caminhada sem esperanças, são códigos comuns de um protocolo verde-amarelo corroído.
Indignado. Olho mais uma vez pela vidraça fragmentada. Um raio de sol muito tímido colore de amarelo esta opaca manhã.
Neste momento Cláudio recolhe suas ferramentas de jardinagem, acende outro cigarro, ajeita o seu chapéu, mão na cintura. Olha com desprendimento para o céu muito azul com nuvens violáceas e guarda em sua memória pictórica treinada a última visão de suas queridas ninféias em comovido esplendor. Acompanhado de seus pulmões tomados pela praga recolhe-se ao seu estúdio para mais uma pincelada eterna. No mesmo país, oito anos antes, o também Cláudio, e também invadido pela praga orgânica, fecha definitivamente a tampa de seu piano de onde inesquecíveis obras foram criadas para a claridade da vida. Sem a placidez e serenidade de seus colegas franceses, mas com violência inesperada e vermelha, o brasileiro Cláudio é também dilacerado pela praga em forma de projétil que não apenas trincou a vidraça do seu retrato, mas enegreceu ainda mais o lado escuro da existência humana.
Desligo o meu micro. Mudo mundo.
[neuras - 26.VIII.2K5]
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