quarta-feira, outubro 19, 2005

E-mail a um Amigo

Por aqui o típico friozinho tropical que se alterna com dias invernais ensolarados. Ambos assistem ao desfecho de minha gripe em sua tão ansiada decadência existencial. As pessoas continuam a me surpreender. Uma amiguinha oriental, literalmente falando, dos meus felizes anos teens me achou em um dia desses. Pelo telefone reconheci o seu agitado estado de ser, assim como a gargalhada juvenil explosiva, tão guardada e esquecida nas infindáveis gavetas de minha memória. Durante o breve contato tive que me esforçar para lembrar dos donos dos nomes tão vivamente enumerados e no redemoinho de informações atualizadas de parte a parte. Isto é, de minha parte, aquelas informações gerais e triviais requeridas em formulários cadastrais: estado civil, profissão, local de trabalho, etc... Enquanto falávamos a sensação foi estranha, pois somente fragmentos de uma época esquecida se materializaram em imagens rápidas e opacas. Fui tomado por uma excitação meio nervosa acompanhada pelos meus batimentos cardíacos acelerados. Ao desligar, continuei sentado por alguns instantes, viajando por lembranças na tentativa de reconhecer lugares, aromas, pessoas e, principalmente, montar seqüências completas, ainda que breves, de situações vividas há tantos anos atrás. Em um trabalho penoso de reconstituição lembrei-me com alegria de partidas disputadas de basquete na quadra coberta da escola, onde o físico avantajado e a técnica mais refinada do Sérgio M. se destacava contra a agilidade e as cestas certeiras de outro Sérgio, B., do time oposto, formado durante as aulas de educação física. Uma sensação gostosa me invadiu ao lembrar da velha fórmula de seleção dos times através da escolha alternada de dois "capitães" previamente indicados. O corpo suado, a alma lavada, após uma vitória apertada, cuja última assistência fora a minha. Nada mal para uma disputa entre os "camisas" e os "sem camisas". Realmente nada mal; surpreendi-me, com um leve sorriso. Cena recorrente foi a avaliação física periódica com a inclusão do teste de Mr. Cooper: doze minutos de um suadouro interminável em área coberta cercada de colunas de concreto. A contagem das voltas, o desejo de ser o mais rápido. No final, o cansaço molhado, as dores nas pernas, a procura pelo ar desaparecido, o resultado mediano. A dura realidade para um potencial atleta: medíocre. Lembro-me então da figura quase atlética do professor em seu agasalho azul, três listas famosas, camiseta pólo branca e apito pendurado no pescoço. Como era mesmo o nome dele? Para um esforço inicial, já é demais ! As meninas, claro, tinham aula em separado com uma professora que nem gostosa era. Mas as meninas da minha classe... era um prazer poder observá-las da arquibancada de concreto praticando handball com seus agasalhos e calções. Tudo devidamente apreciado em seus mínimos detalhes.

Você deve estar estranhando tudo isso ao ler este e-mail. Raramente falo sobre fatos passados ou reminiscências juvenis, mesmo nos momentos mais reservados ou embriagados. Não que eu seja tímido ou avesso às recordações, mas simplesmente não costumo exercitar a memória neste sentido. E talvez, de alguma forma, tenha sido treinado para olhar sempre para frente, coisas do tipo: pés no presente e olhos para o futuro ! Horrível... Aliás, não me vem à mente com facilidade passagens cristalizadas em anos distantes. Percebo agora se tratar de uma anomalia; talvez. E sinto as dificuldades provenientes da ausência de prática deste tipo de exercício. Uma grossa crosta de ferrugem. Lacunas imensas que dificilmente serão preenchidas; resultantes da oxidação crescente dos contatos elétricos de meus poucos neurônios especialistas. Penso que poderia ter me divertido mais, solitariamente, apenas brincando de lembrar. Percebo também como os arquivos empoeirados podem se perder em datas de registro dúbias dificultando enormemente o encadeamento correto dos fatos, ou melhor, das lembranças seletivas. Links quebrados, penso com ironia. Como numa homepage mal feita onde o internauta em sua primeira visita se depara com informações espalhadas sem uma organização aparente e, se frustra, na tentativa de obter mais detalhes em páginas com endereços inexistentes, ou pior, "em construção".

Mas insisto nesta aventura recém descoberta... na tentativa de restabelecer com minha persistência as conexões avariadas.

Reuniões de grupo raramente produtivas, mas com lanches soberbos de mães prestimosas, “papos-cabeça” rasos, mas satisfatórios. Às vezes, um banho de piscina revigorante, um duo de flauta e violão na vã tentativa de reproduzir partituras barrocas italianas. Para compensar, sempre boas notas que dissimulavam o mau comportamento adolescente de bombas no banheiro, atividades subversivas no Centro Acadêmico, conflitos com a megera professora de OSPB, beijos escondidos, contestações escancaradas. A verdade absoluta de um diletante imberbe quanto ao imperialismo americano; a recusa sistemática em consumir produtos emblemáticos como a vilã coca-cola. Viva o guaraná amazônico ! A descoberta do elitismo arrogante do cinema de arte pouco compreensível, nomes estranhos como Godard, Buñuel, Antonioni, Truffaut, Fellini, para citar alguns poucos. E acima de todos, Fassbinder. Ciclos na GV, no cine Bexiga. Cine Biju, quem se lembra? Leituras em tons negros de Orwell, Kafka e Huxley. Tudo isso regado a infindáveis jogos de ping-pong em mesas improvisadas com a disposição de inúmeras carteiras escolares, raquetes "Butterfly" e redinha verde, resultado de uma famosa "vaquinha". Campeonatos internos com a seriedade de uma olimpíada tendo como prêmio a respeitabilidade e admiração de seus pares e o sentimento superior da excelência. Tudo feito com muita cumplicidade, de forma solidária e “adulta”. A discussão de atitudes, a negação do estabelecido, as perspectivas de um grande futuro. De mudanças.

Nesta maratona nostálgica lembrei-me de um episódio que ilustra bem o espírito daquela época. Quase posso afirmar que se tratava do último bimestre da 7a. série. Da matéria, não faço a mínima idéia, mas o sentimento que tenho para com a professora de rosto esquecido é de simpatia. Grande parte dos meus amigos estava na iminente situação de “repetir” de ano. Se nesta matéria não se alcançasse a média anual requerida, ainda que medíocre, seria a gota que precipitaria toda a tragédia diluviana. No espírito de Missão Impossível arquitetamos um estratagema audaz e infalível para surrupiarmos um exemplar daquela última prova. As provas estavam em cima da mesa de nossa querida mestra, dentro de uma pasta de papelão colorido, e muito próximas da primeira carteira, onde se sentava um de nossos comparsas, ou melhor, elemento de nosso bando. A prova seria aplicada na aula seguinte, e como sempre, todos se sentiam e, de fato, estavam despreparados.

Para a adequada ambientação voltemos à década de 50, clima noir com ventiladores de pá sobre nossas cabeças, a voz em off de Bogart como narrador. Em branco e preto, melhorou ainda mais. Contraste no último. A professora com aquele vestidinho branco de bolas pretas até as canelas, longas pernas, cabelo impecável, laço de fita negro no cabelo combinando com o da cintura, batom vermelho nos lábios carnudos, curvas generosas e seios fartos.... uma verdadeira pin-up de calendário de borracheiro daquela época. À imagem da namorada do Spirit, tão bem desenhada por Eisner, se dirigiu ao fundo da classe, com suas formas balouçantes, provocando inúmeros suspiros e outros devaneios mais escondidos. A origem deste deslocamento perfumado tinha sido uma dúvida técnica sobre determinados aspectos da circunvolução primeva de um parafuso órfão; ou coisa muito, mas muito parecida. A clara exposição de nossa desejada professora atraiu inúmeros colegas, todos participantes do plano em andamento, que numa configuração geométrica cavernosa impediam qualquer visão da frente da classe. Tanto a lousa, quanto a bandeira verde-amarela e mesa da professora foram imediatamente esquecidos diante da discussão acalorada no “fundão” da ampla sala. Seguindo à risca as instruções de nosso minucioso plano, nosso agente nervosamente esticou o seu braço e, de forma ágil e determinada, abriu a pasta de papelão e sacou um exemplar da almejada prova. Escondeu-a no seu fichário, objeto muito popular nesta época, utilizado para carregar cadernos espiralados e livros, e se manteve imóvel olhando fixamente pela janela. Parecendo esperar pela conclusão deste 1o. ato, a discussão subitamente cessou e, mais uma vez, nossa professora desfilou pelo corredor de carteiras, desta feita, no sentido inverso, e sentou-se graciosamente em sua cadeira cruzando suas longas pernas.

Todos os olhos da classe se fixaram na figura do calendário e, sob as pás dos ventiladores, podia-se ouvir uma oração monocórdica e uníssona dirigida a todos os deuses onipresentes. Entretanto, os próximos quadrinhos viriam a demonstrar que os deuses estavam surdos nesta manhã. A indignação súbita na voz de nossa professora revelou o nosso fracasso. Abrindo a sua pasta levemente deslocada sobre a mesa, imediatamente percebeu a nossa artimanha. Não que ela fosse brilhante ou adivinha. Simplesmente o nosso agente, altamente treinado em furtos de provas escolares no Oriente Médio, havia seqüestrado apenas parte da prova; algumas folhas, deixando à vista uma página intermediária com questões que iniciavam com uma numeração truncada. O crime fora facilmente descoberto. Sem que ao menos tivéssemos compartilhado o fruto de nosso delito. Estávamos perdidos. A professora transtornada exigiu a atenção de todos e iniciou o interrogatório coletivo. Como se nunca soubéramos articular um simples fonema apenas nos olhávamos cúmplices, certos de que seríamos duramente castigados. Além disso, o desapontamento pela nossa flagrante incompetência havia nos deixado vulneráveis. Como o silêncio persistia em resposta às questões de nossa já não tão amada professora e o assunto era extremamente grave, demandou a presença de nossa odiada diretora.

Após minutos intermináveis a presença germânica de nossa temida diretora já nos intimidava apenas com seu olhar severo. Aplicou-nos um longo sermão e mais uma vez exigiu que o autor da façanha se levantasse de sua cadeira e se apresentasse para a execução. O folhetim policial chegava ao seu ápice recheado de elementos de suspense e terror.

Resultado da pressão insuportável e suando como um condenado à cadeira elétrica, o nosso especialista em furtos levantou-se trêmulo. Estava lívido. Quando a diretora em seu íntimo deleite se preparava para o tiro de misericórdia, Flávio S. levantou-se com um sorriso irônico. Todos, surpreendidos, se viraram para ele. Do fundo da sala outro membro de nosso esquadrão também se levantou, bravamente. Nossa loira, a mais estudiosa da turma, prontamente se colocou de pé. E também a morena mais cobiçada. E assim, sucessivamente e de forma caótica todos os alunos da classe se solidarizaram. Então, o representante da classe, com toda a autoridade que lhe competia esclareceu aos representantes inimigos que a quadrilha era composta por toda a turma e que todos haviam participado da missão.

A diretora então, sem saber exatamente o quê fazer, disse que tomaria as medidas cabíveis e deu por concluída a jornada do dia nos gratificando com uma dispensa coletiva. A professora manteve a data da prova para o dia seguinte e se retirou decepcionada. Um clima tenso desconsolado.

No dia seguinte fomos informados pela diretora que a dispensa coletiva seria entendida até o final do período letivo. Portanto, doze dias de gancho. O estado-maior inimigo fora severo. Punição exemplar e, digamos, com a sênior visão de hoje, merecida. Com isso, quase oitenta porcento da turma teve a perda de ano consolidada. Sem qualquer tipo de apelação ou lamúria. Com cartas endereçadas aos pais. Uma mancha devastadora. Conseqüentemente, o grupo que se juntara três anos antes e se mantivera unido neste período foi quase que inteiramente dizimado. Para completar fomos todos graciosamente convidados a comparecer durante as férias de verão para pintarmos os corredores internos dos três andares de nossa escola, bem como a criação de um grande painel sob a orientação de nossa luminosa professorinha de artes. Duas semanas árduas onde pudemos desenvolver nossas habilidades como pintores de parede e artistas de painel.

Surpreso? Também estou. Não me julgava capaz de montar este pequeno quadro de maneira tão fluida e divertida. Após esta breve jornada ilustrada parece que redescobri o caminho de volta. Claro que a memória sofre distorções, ainda mais quando abandonada em locais escuros e sem ventilação. Solitária, ela vai se adaptando e sofrendo mutações. Mutilações e enxertos com o objetivo de dar forma, e um sentido narrativo ao episódio. O conserto de links quebrados. O mais fantástico é a preservação das sensações, impressões e emoções provocadas por fotografias amareladas e filmes envelhecidos. Após este exercício, que perdurou por toda a tarde, me sinto um pouco mais próximo de suas divertidas histórias, sempre contadas com talento único e entusiasmo contagiante; sobre a sua vida de estudante, encontros amorosos: húngaros ou russos e viagens inusitadas. Em uma velha cantina, em um restaurante japonês ou árabe, nos cafés dos jardins. Como um aprendiz redescubro um velho caminho, antes abandonado e acinzentado, agora interessante e colorido.

Espreguiço, acomodo a cabeça em minha poltrona favorita, fecho os olhos e me deixo levar pela deliciosa sensação de revisitar a minha história como um ser humano qualquer; com a ajuda da imaginação. E, para minha surpresa, descubro algumas pequenas imperfeições.

[neuras - 24.IX.2K5]

2 Comments:

At 7:42 AM, Blogger Zappi said...

Obrigadão pelo e-mail! Este foi mesmo um mail emocionante. Boas Festas! Nos vemos em São Paulo!

Até

 
At 9:30 AM, Blogger Unknown said...

http://gvive.org.br/reviews/neury-haruo-nakamoto/

 

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