quinta-feira, março 16, 2006

Memórias de um Lugar que Nunca Existiu

Caminha despreocupadamente pelo centro da cidade. Largado, sem rumo ou objetivo definido. Andando como em outros muitos sábados não distantes. Jeans básico, cinza escuro, camiseta branca, gola careca - sua preferida, uma bota surrada no pé. É manhã muito cedo, toma um expresso com pão de queijo ainda morno, sentado em uma pequena banqueta. Percebe uma vovó simpática que o espreita de um grande painel atrás do balcão. Do seu cigarro amigo brinca com a branca fumaça que surge em arabescos que se contorcem. Não há ninguém ao seu lado e com isso presta maior atenção ao local em que se encontra: atendentes solícitos que trocam palavras sorridentes e a insistente vovó que algo lhe oferece. Revitalizado pela breve parada continua em sua jornada incerta, apreciando os prédios de arquitetura antiga, pequenas casas geminadas de altos portões enferrujados, árvores cansadas que despontam pelo caminho, os paralelepípedos irregulares. Olha para cima e as nuvens acinzentadas e gordas preenchem o céu triste da manhã. Muita água caíra do mesmo céu durante a noite. Nenhum pássaro, gato ou cachorro. Apenas alguns poucos anônimos que passam conversando ou mudos, solitários.

Instintivamente acaricia a sua barriga saliente: a mistura mineira em fase de digestão parece afetar os seus sentidos, antes entorpecidos, que gritam agora cavernosamente. Percebe um crescente contraste em sua visão. Como um banho rude de colírio refrescante. Assustado, olha para baixo e de forma biônica, inacreditável, distingue detalhes do chão sujo, cujo formato lembra mosaicos que opõem cores, luz e sombra, volumes com grande plasticidade. Sente a textura do material sem tocá-lo. Sente vertigem com os desenhos que se formam rapidamente em tons de cinza, longínquos, que abrigam uma lógica criativa. Ao seguí-los percebe uma enorme casa aparentemente abandonada. Atraído por tudo, ou quase nada, caminha em sua direção. Altos muros a protegem, embora descascados e maltratados, exibindo suas entranhas em forma de tijolos crus esburacados. Uma velha árvore se debruça apoiando os seus cotovelos na alvenaria castigada como a bisbilhoteira do distante bairro onde nascera e se criara. Do portão fechado, lembra-se do esforço em destravar a tranca, sempre emperrada, com sua lingüeta teimosa, nunca convidativa e que não o deixava alcançar as ruas e a sua liberdade. Estremece.

Já no interior das paredes caiadas e sujas, no quintal lateral, percebe vestígios de um varal pelado, há muito sem sustentar trajes alegres e balouçantes. Contrapõe-se a roseiras verdes blindadas pelo orvalho fresco. Na varanda destruída, as tardes intermináveis, estirado junto aos seus, calado em devaneios, às vezes alucinantes. A mesinha repleta de vidros com pílulas coloridas delirantes, um copo com água. A ausência de ser, da vontade própria, o fracasso de tudo. O olhar atento e punitivo de trogloditas da ordem. Horário para tudo: dormir, comer, banhar-se, aprontar-se para visitas inexistentes, pílulas, dormir. Choques, vozes amigas e falsas. Cordas e mordaças. Correntes ao longe. Impotência. A constante presença do pesadelo como guia por entre lugares escuros; distorcidos por imagens minimalistas de objetos ameaçadores, afiados e perigosos, residentes em uma cozinha tomada por pequenos seres vivos, voadores e rastejantes. Repugnantes de todos os formatos, matizes e dimensões. O passeio agonizante por paisagens de padrões geométricos replicados, incessantemente, formando uma trama impossível de escapar. Mandalas imperfeitas do pensamento. Algumas vezes de forma irritantemente organizada, crítica. Outras, confusas e aleatórias, desafiando e provocando o espectador. O ar viciado. A umidade sufocante. O ruído de gotas despencando de uma torneira torturante. O eco de botas subindo por escadas metálicas, perseguindo por intermináveis corredores sem esperança. A visão de uma forca. O convívio com formas, volumes e padrões que agridem e confrontam. Gritos conhecidos de uma rotina monocórdica.

As noites solitárias, livres de sedativos, viajando de forma consciente, fazendo questionamentos pseudofilosóficos, naturalmente irrespondíveis. A brincadeira mental de filmar o seu próprio passado desconcertante preenchido de rostos familiares, duros e frios. Visita lugares imaginários, compostos de imagens entrecortadas e incoerentes, resultado de fotografias de revistas, outdoors e filmes pornográficos do velho Olido. Da imagem borrada de sua antiga companheira, apenas o trejeito de agitar grandes argolas em seus pulsos negros. Onde andará com seu filho? Um desfilar de belas garrafas, sedutoras e vazias. O queimar reconfortante ocupando o abandono cada vez mais obstinado. O desejo pelo não ser; a negação do ver, sentir e pensar. A compaixão por si mesmo; no corpo, marcas do desgosto provocado, sensações de profunda tristeza. O resgate impossível.

Neste processo doloroso de abstinência do mundo, a desconstrução quase que total, sistemática. A dissecação de si mesmo em fragmentos dispersos, desconectados. A interferência externa em entrevistas burocráticas. A procura pela reunião de elementos básicos numa tentativa inédita de organização. Dúvidas. Os métodos previsíveis e insistentes pela independência indesejada. Muito retrabalho na confluência de alma e corpo. Ambos esgotados, desinteressados.

Por vezes o lampejo redentor da luz. Uma longa nota aguda alarmante. Luz irreal atravessando grossas vidraças de janelas com barras de ferro. Misteriosa luz que invade, adere a tudo, que colore, aquece e acalma. Queria ser luz. Leve e reveladora. Às vezes forte, intrusiva, às vezes sutil, afável. Sentia-se muito longe disso, escondido, escuro por dentro, fraco, à espera de um simples final. Sem exclamações ou interrogações, um singelo ponto final. Brigava contra o abandono e a morte.

Sorriu enquanto se sentava no chão da varanda destelhada. Por uns instantes observa o desenho de fracas sombras que se formam. Tira de seu bolso uma caixa de fósforos e o seu último cigarro. Vagarosamente risca o palito na lateral arenosa desgastada. Sua cabeça se incendeia. Concentra-se na chama viva, cintilante, vencedora.

Do lado de fora dos muros a cidade agora desperta, iluminada.


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[neuras - 16.III.2K6]

2 Comments:

At 9:19 PM, Anonymous Anônimo said...

Parabéns Neury! Este é demais!

 
At 9:27 AM, Anonymous Anônimo said...

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