domingo, fevereiro 12, 2012

A Vida é Bela !




A vida é bela !

Com esta frase em seu pensamento Marcelo se levantou domingo pela manhã.

Conferiu as horas no seu celular como de costume, levantou-se vagarosamente, calçou os seus velhos chinelos e se dirigiu ao banheiro. Neste pequeno trajeto lembrou-se da razão que o motivara a acordar tão cedo no domingo: Jardim Botânico.

Fazia muitos anos que ali estivera. Em seu consciente, ainda perturbado pelo sono interrompido, lembrou-se dos picnics adolescentes com a galera do conservatório e as celebrações de aniversários em dias ensolarados e despreocupados. O objetivo secreto em dar um passo a mais na conquista de sua futura namorada... Lucíola ! Agitada, corpo de violão, grandes olhos, sorriso contagiante. Cheiro gostoso de tempos distantes.

Enquanto se banhava assistia em sua pequena tela de cristal as imagens dos bancos de memória daquela época com satisfação e nostalgia.

Repassando agora os cincoenta anos suspirou com os múltiplos caminhos que a vida o havia conduzido. As escolhas por bifurcações difíceis e com placas enganosas. Os atalhos confusos e as trilhas pedregosas e fechadas. Momentos de indizível luxúria como os monumentais vales verdes e refrescantes, como a chuva inesperada e abençoada. A mata fechada e sufocante e a sensação de estar perdido.

Arrependido ? De forma alguma ! A felicidade é portátil... lembrou-se de seu amigo de todos os dias.

Sua vida atual, longe da descrição de manuais práticos ou romances maduros, continuava sem um destino delineado ou um alívio em progresso. Brigara com o mundo em todas as instâncias, em todas as frentes, múltiplas na maioria das vezes, com afinco e determinação. Agressivo ? Certamente... mas constante e coerente, ainda que muitas vezes equivocado. O trabalho atual inspirava cuidados. Em uma sala de recuperação e pós-operatório, pensamentos positivos para um futuro próximo alternados pela insegurança, remédios amargos e tratamento intensivo. Convicção de dias melhores, mas árduos. Como de costume, sem almoço grátis !

Preparou-se cuidadosamente cumprindo todas as etapas do ritual dominical. Mochila, cantil, botas... o amigo protetor ultravioleta. Chapéu recém-adquirido. O sol cúmplice despontando.

Vinte minutos depois estava de frente às catracas que delimitam as fronteiras do pequeno jardim remanescente da mata atlântica.

Um corredor de coqueiros o recebe como a um rei !
Enche os pulmões com sofreguidão e agradece pelo simples fato de existir. Embora tudo possa ser virtual e menos encantador do que a forma com que se apresenta, afastou Neo de seus pensamentos e concentrou-se nas formas de uma deliciosa Niobe à sua frente. Aos poucos foi se envolvendo com a paisagem desta manhã, única e planejada.

Pensava em seu velho pai, agora acompanhado pela sombra maligna do Alzheimer, estranho renitente presente em artigos científicos que gostava de ler em suas horas vagas e que tornara um obsessivo e angustiante estudo. O sorriso encorajador de sua mãe. O sofrimento silencioso de sua irmã querida. O grande desafio. As prioridades embaralhadas e esquecidas. O mundo aparentemente vazio, agora preenchido por cantos de pássaros escondidos.

O suor declarado misturando-se às lágrimas teimosas.

Para baixo olhou a sua sombra, conhecida e agora triste. A manhã de domingo, agora completamente desperta, trazia famílias em sua diversidade aparente, mas todas iguais em sua essência. Tolstói observador. Crianças alegres e solares, acompanhadas por pais descontraídos e sábios avós. Namorados enamorados... Gargalhadas infantis interrompidas por cantos da natureza.

Continua caminhando, agora em frente às estufas de suas memórias, imutáveis, brilhantes ao sol.

Nas laterais, escadarias de pedras irregulares que levam a portais inacabados, emoldurados por uma vegetação luxuriante, embora confinada e arredia. Seu pai, agora alegre com mais uma vitória do timão. A simplicidade nos gestos. O prazer em uma pizza de mussarela, sua preferida. O pastel de feira. Árias de Verdi. Admiração por Liz Taylor, rival de sua mãe. A paciência infinita em explicar repetidamente a importância de ser correto e honesto. Valores...

As lembranças de uma infância difícil, filho mais velho de uma família numerosa de imigrantes italianos. O casamento por convicção contra tudo e contra todos. A reprovação severa de uma família incompreendida, mas perdoada e justificada. As escolhas novamente difíceis, mas verdadeiras. O sonho em ser arquiteto, desfeito pela vida dura e por professores impiedosos, pregadores da arquitetura para ricos. A vida é bela, mas cara e cruel em suas particularidades. Os dias em uma pensão, quarto subterrâneo de uma cidade de sonhos. Janela com visão para o andar de pessoas apressadas.

Sobe as escadas e atravessa o portal. Stargate !
Ao passar por uma senhora simpática e de chapéu engraçado, é chamado em voz baixa, quase um segredo: "- Veja !"

Macaquinhos ariscos de olhar safado se divertem em brincadeiras inocentes por entre as folhagens de árvores circunspectas e serenas. Ficam incomodadas pelo agito intruso. Consolam Marcelo com suas travessuras, lembrando-o da vida que vale ser transposta em suas alegrias, incertezas e tristezas.
Puro encantamento !

Pequenos instantâneos de uma vida plena. Imediatamente se lembra do Deus de Spinosa: "Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Eu vivo e aí expresso meu amor por ti."

Longos momentos de gratidão em comunhão solitária e silenciosa.

Pelas alamedas do parque a visão do lago repleto de ninféias orgulhosas. Cativado, se detém em sua geometria exuberante e cores delicadas. Ouve a natureza mais uma vez. Cruza com um alienígena com os seus fones de ouvido. Água fresca em uma pausa merecida. Observa as pessoas com curiosidade. Câmeras sofisticadas. Diálogos superficiais. Admiração momentãnea e fugaz em diálogo com seres imortais e misteriosos.

Um bugio marrom-avermelhado se espanta com olhares curiosos, excitados lá embaixo; incompreensíveis. O ser humano, ser curioso e engraçado; pensa displicente. Um moinho d'água preguiçoso. Uma casa rústica para a alegria infantil e fotógrafos eventuais. Bambuzais organizados em uma descida de esperança. Um velho jipe militar com pedais, a alegria do natal, o sorriso paterno inesquecível. Fragmentos de uma infância feliz.

O fusca verde com bancos reclináveis, transformados em uma cama móvel pelas estradas do interior paulistano. Um sorvete de milho. Pão de semolina de um Frango Assado distante. Pescar no Lago Azul com uma varinha de condão. As tardes em um clube verdejante com batatas fritas. A piscina azul com estrias balouçantes de raias olímpicas desafiadoras. A mão firme e segura de seu pai zeloso. Tantas lembranças que começam a ser esquecidas por neurônios cansados causam revolta surda ao seu redor.

O abandono de dirigir, pequeno prazer, pelas ruas da cidade. O pânico súbito por não reconhecer onde está. A lista esquecida do supermercado. Tomou os remédios da lista infindável, ou em dobro ? A consciência da perda gradativa de estar consciente. Como em um sonho afastado, nebuloso e indefinido.

Calor úmido e abafado em uma visita à natureza organizada pelo homem. Estranha e tão insípida perante a grandiosidade e riqueza de nossas paisagens terrestres libertas, tão duramente castigadas.

Placas beta-amilóides acumuladas, uma forma de proteína, que corrói os contatos elétricos de nossas sinapses, tão necessárias ao desfrute da vida abençoada em um planeta condescendente, mas igualmente cansado.

Olha para o céu por instantes eternos em busca de esperança forte e acalentadora.
A aceitação dos acontecimentos sempre fora uma dificuldade para ele. Inconformado, questionador, resistente e lutador. O descrédito por um destino e o acreditar em sua força jedi bradando o seu sabre de luz; indignado e invencível. Sabia que participava, de forma intensa, de um desafio sem precedentes. Ansiava por diagnósticos milagrosos de Dr. House e queria contar com a bravura entrépida de Clint, Sly e Schwarzenegger. Com a energia e resignação de Daisy do conto de Fitzgerald. Por onde andará Tony Stark ?

Não acreditava em Deus. Longe de seus rituais sentia a ausência de conforto proveniente da fé. Acreditava na fé como forma de expressão suprema do cérebro pouco compreendido. A vibração, o foco, a energia advinda de um ponto central.
O estudo e o esclarecimento científico, analítico e racional, preenchiam apenas parte da angústia que sentia. O pensamento positivo, a força do acreditar e o fazer o melhor a todo instante complementavam o espírito de Marcelo.

Entre altos e baixos emocionais, buscava refúgio na natureza, se reenergizava... A beleza do parque, as flores e plantas desconhecidas, o pequeno calango que o observava desconfiado, os peixes vermelhos em vida artificial, patos acostumados ao som de maritacas vadias. O céu azul, nuvens carinhosas. O cheiro do verde, tão caro ao nosso absorto andarilho.

Viver intensamente !
Compartilhar momentos familiares e com as pessoas que lhe eram caras. Fazer o melhor ! Viver e ser melhor: sua missão. O privilégio de conviver tantos anos e de forma plena com seus pais. Gratidão.

Emoção infantil de um cincoentão. Marcelo esboçou um sorriso.
Respirou fundo.
Mais leve e agradecido continuou a sua jornada.
A vida é bela !