segunda-feira, novembro 29, 2010

A Chuva

A chuva para a maioria das pessoas traz uma cor triste, azul-acinzentada, para as suas vidas. Uma certa dose de melancolia, talvez provocada pela umidade, pela monotonia dos pingos que caem, talvez pela necessidade do uso de apetrechos adicionais, inúteis debaixo de sol. Não sei ao certo.




Sei que o mal tempo, conhecido por nós, provoca dificuldades adicionais no trânsito, torna as vias mais perigosas e escorregadias, acidentes são mais comuns, além de transtornos maiores como desmoronamentos, enchentes, acidentes aéreos, etc. Traz ainda a necessidade de andar semi-protegido, carregando aquele instrumento patético e primitivo, em constante batalha nas ruas lotadas de transeuntes apressados. O metrô e os ônibus, aparentemente mais cheios, e, certamente mais úmidos, em um ambiente abafado de janelas fechadas e embaçadas, incitam o desânimo e abatimento em uma população escravizada pelo trabalho diário e mal pago. Pelas ruas e avenidas, falsos corredores de escoamento, veículos ansiosos e nervosos estão parados, a sincronia do único movimento percebido através de suas palhetas em infinita negação, reflete o pesar de seus condutores. Buzinas irritadas. Nas calçadas fisionomias cinza-azuladas em passos rápidos, sacolejantes, resultados de choques ao alto de frágeis estruturas metálicas multicoloridas. Nos rostos lágrimas fingidas descem vagarosamente. É o início de um dia chuvoso.

Para desespero das mães, ocupadas em seus inúmeros afazeres domésticos, é o prenúncio de mais um dia atormentado. Seus planos para secar as roupas, levar sua cadela alvinegra para passear, ir à feira semanal, lavar as vidraças, estão definitivamente comprometidos. Mas o pior, pensa, são as crianças, impedidas de descerem para brincar, que estarão mais que presentes através da gritaria, resmungos e irritações, típicas de um confinamento infantil forçado.

Ando pelas ruas do meu bairro e presto atenção ao meu redor. Os fenômenos da natureza sempre me intrigaram desde criança. O pôr do sol que se despede, o movimento de nuvens mutantes, as incansáveis ondas do mar, as assustadoras trovoadas, raios fugazes e ventanias invisíveis. Quando começava a chover corria para o jardim de minha casa e olhava para o céu tentando descobrir a origem das gotas que caiam no meu rosto vindas de um céu inalcançável. Abria a boca e sorvia as gotas de água; piscava, quando teimavam em molhar os meus olhos. Era uma sensação mais do que refrescante, gratificante. Após alguns momentos, verificava assombrada que todas as coisas estavam cobertas por uma camada transparente, naturalmente molhada, que ressaltava as cores das árvores, plantas, da grama. Minha irmã mais nova nestas ocasiões sempre repetia que as plantas estavam alegres e cantantes com a chegada da chuva; por isso tudo, parecia mais verde e bonito. Logo corria para a varanda e me sentava em um pequeno banco de madeira. Observava a água escorrendo pela garagem em direção à rua, vencendo as ranhuras do cimento mal assentado e passando pelo velho portão enferrujado. Aquilo me fascinava: o poder de cobrir tudo e a todos e a mudança de comportamento que impunha às pessoas. Estendia o meu braço e deixava que os pingos se acumulassem em minha mão. Recolhia então a mão e me propunha a analisar esta substância enigmática. Transparente, gelada, a sensação ao acariciar uma gota com os dedos, observava o seu movimento errático na palma da minha mão. Estendia novamente. Uma vez mais. Inspirava o ar cheiroso, diferente, de verde, de terra úmida. Cheiro de chuva, gravava.



Agora, com os mesmos olhos infantis, via o pequeno rio que corria na sarjeta, alinhada pelo meio fio, rumo ao bueiro guloso sob os meus pés. Levava pequenas folhas, papéis sujos e amassados, copos de plástico.

Outro aspecto da chuva que me entretinha era o som que produzia. Guardava em meu arquivo sonoro os seus registros de diferentes locais, situações e épocas de minha existência. O ritmo ansioso ouvido no interior de nosso velho fusca à espera de meu pai comprando remédios para a minha mãe enferma. Sua batida aconchegante e cúmplice na apertada tenda de lona amarela durante uma transa desvairada em uma praia carioca. A sua fúria contra um alto toldo metálico que contrastava com a minha alegria explosiva ao ver meu nome em uma lista de aprovados. A sua companhia através de suas batidas na janela enquanto lia um livro de Clarice. Seu rock ensurdecedor na quadra de esportes durante os jogos de vôlei das aulas de ginástica do colégio. Dificultava a compreensão das palavras de nossa instrutora e nos refrescava após a derrota. Os seus toques alentadores e perseverantes nas janelas largas do corredor do hospital, onde ansiava por notícias de sucesso da cirurgia da pessoa amada. O ritmo alegre, extasiante, comemorando com seu ressoar em meu guarda-chuva após as notícias anunciadas.



Continuo a ver os pequenos barcos disformes sendo carregados impiedosamente pela corredeira para o precipício da boca do lobo. Se não bastasse, são castigados por ondas marginais originadas dos pneus dos carros em velocidade ao tentarem amassar as poças de água da avenida. Sem se importar, as pessoas continuam andando rapidamente, desviando-se com agilidade do fluxo contrário com suas armas em punho e o pensamento em seus destinos. Todos com máscaras de aborrecimento, semblantes sombrios, alguns com capuzes, outros com capas coloridas. Os ambulantes, chateados pela falta de freguesia, expõem os seus produtos sob um plástico transparente, tentam atrair os pedestres desinteressados. Nem o disputado pasteleiro parece ter sucesso com a chuva. Os lojistas de braços cruzados, olhar fixo na rua, compartilham o mesmo sentimento de frustração de seus colegas das barracas mambembes. Da calçada para a avenida vejo o motorista do ônibus cansado, as pessoas amontoadas, molhando-se mutuamente. Algumas janelas semi-abertas. Gritos anunciam o roteiro de uma van com a porta aberta que pára ruidosamente. Caminho em direção à estação do metrô e logo vejo os indefectíveis vendedores de guarda-chuvas. Tão misteriosa quanto a chuva é o aparecimento instantâneo destes arautos em cada estação de metrô da cidade. Solícitos e hábeis no manuseio e exibição das mercadorias de diferentes cores, estampas e comprimentos, mas de mesmo formato. Alguns compram agradecidos, outros contrariados.

Afasto por um momento a minha sombrinha florida cor-de-rosa e olho para o céu. As gotas surgem do nada e são aparadas pelas grossas lentes dos meus óculos. Fecho os olhos instintivamente e me protejo. Ouço uma buzina familiar. Minha carona chegou.