A Primeira Valisère...
Acordo no domingo já ensolarado, decidido. Tomo um rápido banho para afugentar o sonho confuso e persistente. Jeans surrado e camiseta preta básica. Abro as janelas e um ar fresco, verde e outonal invade-me por todos os poros. Sensação agradável, limpa e leve. Um café preparado com esmero, resultado de contínua prática e cuidadosas experimentações. Para apreciadores; embora solitário, não menos prazeroso. Concentro-me na xícara de cerâmica, cores e texturas. Privilegio o sofisticado, mas desprezado olfato. De forma imaginária ouço Liesgen cantando perante o pai rabugento; e todos os meus sentidos concordam com ela enquanto me sento na varanda. Um rápido olhar nas principais notícias do jornal, a mesma indignação e a vergonha de ser brasileiro. A voz de baixo de Schlendrian espanta por alguns momentos de minha mente os eternos problemas de um país historicamente irresponsável. Calço as velhas botas sem esforço e instantes depois ganho as escadas que desço sem pressa assobiando.
No térreo saudações cordiais. Respiro fundo ao abrir o portão de grade escura, a rua ainda deserta, a escola em frente temporariamente abandonada. Presto atenção às velhas árvores, sobreviventes das últimas tempestades da estação. Uma vizinha lava o quintal mecanicamente. Portões escancarados deixam seu negro cão perambular pela calçada em uma exploração tímida, seu prêmio dominical. Abana o rabo e me oferece uma bola de borracha azul babada. Afago a sua cabeça e me alegro com a sua ingênua felicidade. Com a minha ingênua felicidade.
Caminho até a estação de metrô. Escadas rolantes. O forte vento de um túnel conhecido. Bilhete único; catracas vencidas. Escadas imóveis. Plataforma abafada e úmida. Vagão repleto de trajes de domingo encaminhando-se para destinos usuais de domingo. Baldeação para a linha vermelha. Muitas escadas depois e me encontro com o velho centro. Hoje tão mudado e cheio de boas intenções de revitalização, como o país, mas ainda mal cheiroso e sujo, como o país. Pessoas ainda dormem acomodadas sob batentes de prédios velhos e decadentes. Outras, de modo agressivo, se estendem no meio da calçada como lombadas humanas, obstáculos aos transeuntes, envoltos em um sono profundo, largado, alcoolizado. Um pouco mais à frente, meio sonâmbulo, um maltrapilho urina à vontade em seu banheiro a céu aberto. As antigas lojas já estão com as suas portas onduladas abertas. Na fronteira com a calçada encontram-se os funcionários eleitos por voto gerencial para mais uma jornada domingueira de vendas. Seus rostos exteriorizam cansaço e desesperança. Apenas alguns, animados, comentam o futebol perdido da tarde anterior, fazendo piadas do time alvinegro, popular e sofredor.
Pelo caminho, ao contrário dos demais dias da semana, a ausência das familiares quinquilharias contrabandeadas e pirateadas expostas pela tribo dos ambulantes da cidade. Poucos carros parados na Xavier de Toledo, alguns táxis. Uma carroça carregada e arriada ao lado de seu motorista concentrado na árdua tarefa de recolher material reciclável. Rapidamente a imagem do Ramos de Azevedo estampada em um paredão de televisores, sendo entrevistado por uma emissora de TV, comentando as suas obras mais famosas, o estado atual do centro e as reformas da Praça da República, Pinacoteca, Júlio Prestes e do Theatro Municipal, meu destino.
Parada final: Morro do Chá. De frente à mini Ópera de Paris, o teatro simplesmente me encanta. De mãos dadas com a minha mãe aguardo o sinal verde para atravessar a rua que nos separa do Mappin com suas enormes vitrines. Aos domingos naturalmente fechada; já a conhecia das poucas vezes em que lá estivera a subir e a descer nos seus apertados elevadores rodeado de pessoas sempre inchadas e ansiosas. O que eu mais curtia nestas viagens verticais era o anúncio monocórdico das atrações escondidas em cada andar daquele enorme edifício em que facilmente eu me perdia. Ficava ao mesmo tempo admirado e com pena da mocinha que passava a sua vida declamando para um pequeno público por alguns minutos. Era um lugar meio assustador: grande e lotado de pessoas. Abafado também. Um exército de atendentes em branco e verde, filas nos caixas. Mas hoje não havia qualquer agito. Apenas as vitrines exibiam grande variedade de eletrodomésticos, sofás, mesas e cadeiras, eletrônicos. Algumas pessoas a sonhar e a calcular.
Do teatro, as grandes escadarias reunindo já um grande número de pessoas conversam animadamente. Outras parecem aguardar os seus pares procurando com os olhos figuras amigas. Subo vagarosamente os degraus tentando memorizar tudo o que os meus sentidos tentam decifrar de forma desordenada e contínua. Tudo é encantador e impressionante: a própria construção com seus traços renascentistas barrocos, a minha introdução a este seleto grupo de pessoas acostumadas a freqüentar este mundo quase intransponível da música erudita. Tenho que confessar que até aquele instante não estava muito convencido de que aquela manhã seria interessante. Apesar da insistência de minha mãe de que eu certamente me apaixonaria, deixei-me levar mais com o intuito de agradá-la. Em casa ouvíamos sempre música, embora meus pais tivessem um gosto bastante diferente da ala progressista e entendida do assunto representada por mim e pela minha irmã mais nova. Do lado mais conservador escutava-se LPs, alguns ainda em 78 rpm, com árias veristas, sinfonias, concertos. Na rádio, apenas emissoras adultas da Cultura e Eldorado. Para nós, vanguardistas, muita guitarra, cantores exóticos e sinistros, altos decibéis enfim. Mas até que suportávamos com uma resistência débil inicial ouvir “música séria”. Até gostávamos de algumas que pedíamos aos nossos pais como em programas de rádio. Mas nunca tinha assistido a um concerto...
Na minha manhã de estréia tinha deixado em casa minha irmã emburrada e contrariada com o meu paciente pai. Ela teria a sua chance algum tempo depois. Meu pai em sua difícil missão a levaria para o clube com o objetivo único de aplacar o incontrolável ciúme.
Entreguei os dois bilhetes com muito orgulho e lá estávamos dentro daquele impressionante local. Simplesmente magnífico! Escadaria e piso de mármore, tapetes vermelhos, pesadas cortinas de veludo, obras de arte distribuídas em um amplo espaço, enormes lustres desafiando a gravidade, bustos, cristais, vitrais multicoloridos e mosaicos. Algo deslumbrante que me lembrava apenas de ter visto em filmes antigos com reis e rainhas. Mas o melhor ainda estava por acontecer. Ao entrar na grandiosa sala não pude me conter. O meu coração acelerou de tal maneira ao vislumbrar da entrada do balcão nobre o palco iluminado com as cadeiras enfileiradas e um grande órgão tubular na lateral. Após sermos conduzidos aos nossos lugares por uma senhora simpática e sorridente pude apreciar melhor o local. Minha mãe percebendo o efeito causado começou a me contar histórias do teatro, sobre a distribuição dos assentos, a ler o programa que havíamos recebido na entrada, a explicar a disposição dos músicos. Coisas que ouvia com toda a atenção e interesse.
Tudo se passou muito rapidamente. Os assentos foram quase que completamente tomados. A seqüência de campainhas, a luz perdendo o seu brilho, a entrada humilde do coro e da orquestra. Aplausos. A afinação dos instrumentos. E por fim, a figura mágica do maestro. Mais aplausos. Naturalmente não conseguia identificar a enorme variedade de instrumentos naquela orquestra. Alguns com formatos esquisitos, outros conhecidos. Tentava encontrar uma relação entre o formato dos instrumentos e o corpo dos músicos. Nada encontrei para a minha decepção. Outra coisa que me passou pela cabeça é se haveria algum tipo de hierarquia entre os diversos grupos de instrumentistas. Nada aparente, apenas o regente como o “manda-chuva”, único e poderoso.
Uma rápida tensão no ar prenunciando o início do programa. O regente com a sua batuta enfeitiçada, porte arrogante. Os músicos em posição com o olhar fixo no seu guia. A platéia sem respirar.
Os primeiros acordes dos violinos e violoncelos num crescente anunciando o ápice sinfônico de um surdo com os cabelos revoltos, roupas desalinhadas e feições severas. A imagem de Beethoven que ilustrava a capa do folheto: Sinfonia No.9 em Ré Menor. Estava completamente arrepiado com a força invisível da música colossal que tomava o meu ser. Aquilo que sentia naquele momento, naquela intensidade, só poderia ser descrita como sublime. Não conseguia encontrar qualquer outra palavra de meu minguado vocabulário a que pudesse associar ao estado de sentimentos em que me encontrava envolto. Tinha apenas a noção de que esta manhã teria um profundo significado na minha vida. Com a minha total anuência esta música, com seu manto liquefeito metálico, encobria toda a superfície do meu corpo que em contato refrescante me arrepiava inexplicavelmente. De quando em quando olhava para minha mãe que correspondia com um sorriso.
Viajei. Talvez tenha sido a minha primeira viagem místico-sensorial sem uso de álcool ou drogas alucinógenas, psicodélicas, tão propagadas na década de 60. Cores, formas, volumes amorfos em constante transformação atiçados por aromas exóticos de diversas intensidades. A água envolvendo completamente os objetos, transparentemente puxando-os para baixo, para mais baixo, em uma dança improvisada. A luz penetrando na água com variações de cor, aconchegando as formas, acalentando-as com seu morno abraço. Surgiam, sonoramente, violas, violoncelos, fagotes e oboés. Mais adiante a flauta prateada afugentando os tímpanos. A batuta, viva e tenaz, movimentando-se, indômita, despertando, harmonizando os diversos timbres, entrecortando-os com pausas premeditadas, seguindo uma trama genial e surpreendente. Com certeza o que sentia ao passar pelos movimentos desta sinfonia se encaixava perfeitamente nas descrições que posteriormente li sobre dependentes químicos em sua primeira viagem. A primeira Valisère...
Nesta viagem, em seu terceiro movimento, apesar de minha pouca idade, alguns lampejos da criatividade humana, de suas notáveis realizações, a concretização da palavra “genialidade”, a primeira página de um livro grandioso da história da humanidade, a fortuna do desfrute dos sentidos. A descoberta e o encantamento do adágio, sentimento de dor contemplativa exteriorizada por trompas, fagotes e clarinetas, que respondem periodicamente em eco. As fluidas sinuosidades das cordas. O adágio desaparecendo, pouco a pouco.
O quarto movimento: um choque. De alta voltagem. Daqueles em que quase se perde os sentidos e você percebe os fios de cabelos se levantarem sob um comando invisível e poderoso. A voz humana! É como se estivesse ouvindo pela primeira vez. E que todas as canções ouvidas, barulhentas como exprimia meu pai, e os ruídos desagradáveis emitidos por pessoas em suas conversas diárias pertencessem a uma trilha sonora defeituosa de um filme classe B. E ainda reproduzidos por vitrolas descalibradas e mal humoradas. O apogeu esplêndido de uma obra única: Ode à Alegria. Não poderia ser mais feliz o título deste acontecimento. Embora não compreendesse alemão, “entendia” o que Schiller escrevera, graças à tradução inequívoca da música de Beethoven. Ao olhar os arcos do teatro repletos de ouvintes atentos, percebi que todos estavam sintonizados na mesma freqüência de recepção e emissão, vibrando na mesma cor e conectados pelas mesmas sensações; imaterial.
Final: êxtase. Aplausos frenéticos de uma platéia desvairada. Estou enlouquecido...
Não quero ir embora. Com a minha mãe tento ao máximo prolongar as sensações, agora, definitivamente parte da minha pessoa. Vou conhecer os salões do teatro, seus lavatórios, os terraços externos, a platéia, os camarotes, o foyer, a alta galeria.
À saída, com certa tristeza, vejo o movimento das pessoas dispersando-se em busca de alimento. O mundo real. Então minha mãe me convida para tomar um chocolate quente próximo ao Mappin: Leiteria Paulista. Cinco minutos de uma indolente caminhada e estávamos entrando e, para a minha surpresa, o local estava com o balcão tomado por pessoas em ternos negros, gravatas comportadas, conversando animadamente. Não acreditava: eram os músicos da orquestra, que carregando os estojos com seus instrumentos descontraíam-se bebendo um café e trocando impressões sobre o concerto. Parecia mais um ritual deste mundo recém descoberto.
A princípio, meio acanhado e tímido, bebo o meu chocolate, atento às conversas, calado e concentrado. Minha mãe apenas observa. Começo então, meio gaguejante, a perguntar ao músico mais próximo o nome do seu instrumento: clarineta. Ele percebe a minha enorme curiosidade e começa, de forma afável e simpática, a me apresentar os instrumentos de sopro, suas diferenças, maneiras de tocar e, sua importância dentro de uma orquestra. Pergunto então porque decidira ser músico erudito e não montar uma banda de rock ou MPB. Outro colega mais jovem, violinista, faz quase que um discurso, apaixonado, sobre as sinfonias de Beethoven, que descubro serem nove! Um terceiro me fala sobre os ensaios e os estudos intensivos para a apresentação de uma peça musical. Minha primeira aula musical; inesquecível!
No trajeto de volta não paro um instante de falar, na tentativa mal sucedida de exteriorizar o meu contentamento, a minha descoberta. Tudo parecia diferente, realmente. Era como se vislumbrasse um novo talento, uma qualidade única em que eu poderia me desenvolver. Como o primeiro contato com o mar; as ondas, o aroma salino, o horizonte longínquo, a visão dos próprios pés em uma dimensão desconhecida, a vontade de se transformar em uma criatura aquática para poder explorar os mistérios do mar. O ilimitado. Procurei no rádio a emissora predileta de minha mãe. Queria ouvir tudo, saber tudo, aprender tudo. Estava completamente seduzido; alucinado. A barragem tinha se rompido.
Sentado nas escadarias do teatro, de frente a Casas Bahia, aberta e movimentada, relembro de forma nítida e seqüencial, como em uma história em quadrinhos, dos movimentos seguintes àquela abertura musical. A descoberta dos discos dos meus pais. O ritual sagrado da audição desvendando a linguagem sonora, tão rica e de difícil tradução para o verbo. A compra dos primeiros discos, a leitura de revistas especializadas, o conservatório. Poucos amigos apaixonados. Uma namorada, um drive-in, e as partitas para violino solo de um tal Bastião. Um aprendizado infindável, um prazer sempre renovado pela releitura de uma peça conhecida por intérpretes geniais. As salas de concerto. O Theatro Municipal.
Agradecido à minha mãe entrego o bilhete, recebo o programa e me deixo levar em direção ao sublime pelo mesmo Beethoven, de eternas feições severas, lenço vermelho, revoltado contra a surdez do seu destino, com seus cabelos desalinhados, trajado de forma desleixada. Fecho os olhos sentado na cadeira de veludo; sereno. Estou pronto para mais uma viagem. Acionar!
6 Comments:
Compreendo toda a paixão descrita!
Gostei de ter passado aqui atravez do Zappi.
Muito bonito!
neuras,
Tenho Bagatelles op.126n°2et3.com Alfred Brendel.Bem suave pra escutar com uma bela taça de vinho...Evidamente tera uns outros na mesma categoria o que você acha?
Volto aqui pra saber sua resposta!
Olá julia.... gosto muito das 6 bagatelles. Após ler o seu post fui imediatamente resgatá-las acompanhado de uma taça de vinho solitária. Sugiro a vc um passeio ouvindo os Impromtus de Schubert com Schiff ou Lupu. Tenho a certeza de que irá se deliciar...
Salut,
Vou "roubar" seu conto valisere pra publicar hoje la no meu blog.
Claro com a devida citação da origem que é seu blog.
Vou passar um tempo em tramento e certeza vai fazer sera otimo conto pra ser lido durante minha ausencia.
Espero que você goste.
Olá Julia.... fico honrado ! Qual é o endereço do seu blog??
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